quarta-feira, 28 de julho de 2010

Sobre "deloutro", discussões e oralidade... O Corvo Branco

Chamou a atenção de quem isto escreve como no português falado na comarca de Sárria (Lugo), concretamente na aldeia de Goiam, de onde provém o Luar de Janeiro, apareciam frases do jeito seguinte:
-Chegou à noitinha e logo se foi deitar. Deloutro dia, ergueu-se e não se recordava de nada.
O sentido que aqui dão a "deloutro dia" é, claramente, "Ao dia seguinte" ou, como costumam dizer em Portugal e no Brasil, "No dia seguinte" ou "no outro dia", "ao outro dia"...
Andou o Luar à procura desta expressão no dicionário e-estraviz e noutros, e nada achou. A sua surpresa foi quando em Merlim e família do escritor galego mindoniense (e portanto lucense) Álvaro Cunqueiro, a palavra apareceu empregue no mesmo sentido que lhe o Luar dava.
Despois de muito perguntar e ler, e como nada pudo encontrar, o Luar de Janeiro começou a cismar na expressão. E surgirom-lhe duas hipóteses:
-Ser um castelanismo, quer dizer, ser decalque do espanhol "del otro día", pero não me parece, porque a expressão castelã seria cousa assim como "al otro día" ou "al día siguiente"...
-Então, talvez seja contracção do sintagma "dali a outro" em que o "a", palatalizado, soe de maneira parecida com "e" e daí "deloutro" (dali a outro >dal'a outro">dal'outro>deloutro)
Pois isso, ainda que oxalá apareça alguém dando melhor explicação, para fazer luz nas tevras nesta sempre apaixonante e mesta fraga da língua, que devemos amar e agarimar.
E indo a outra cousa, dias atrás o Luar seguiu o fio nos foros do Portal Galego da Língua, falando da "Atualizaçom" que a Comissom Línguística da AGAL publicou para adatar a sua normativa ao Acordo Ortográfico recém vigorado em Portugal, uma discussão, por vezes azeda e nem sempre respeitosa, entre os partidários de grafar no português da Galiza distinguindo as tradicionais terminações que a oralidade galega e a norma AGAL conserva (-om, -ám, -ão/ ladrom/pam/irmão), e os partidários de adotar o padrão português (tudo em -ão: ladrão, pão, irmão) independentemente de a leitura conservar a oralidade da fala galega.
Outro dia hei falar sobre este assunto.
Ainda, e isto para leitores portugueses e brasileiros, tanto como para os galegos ouvirem e reconhecerem-se na oralidade do português galego, recomendo as gravações que aparecem no blog do amigo Gascon, ilustre opinador dos foros do Portal Galego da Língua.
Eis o endereço:
Ali veredes ou, melhor dizendo, ouviredes, entre outras, duas gravações, uma sobre um texto literário de Álvaro Cunqueiro, "O Corvo Branco", que aparece na sua obra Escola de Menzinheiros, e outra um texto de um Guia das Aves de Portugal e da Europa, sobre o falcão peregrino. Quem lê essas duas gravações com fonética galega é um bom amigo do Luar, que se chamou a si próprio O Corvo Branco. Quando o Luar o descobriu pensou ser o personagem cunqueirão e assim lho perguntou numa noite de Janeiro em que o tal corvo brilhou como nunca à luz do dito luar. Confessou-lhe ele ser o Corvo Branco que Cunqueiro relatara (desfrutai o texto que bem o merece):
O CORVO BRANCO
(Texto literário de Álvaro Cunqueiro)

Este corvo branco viu-se no Valedouro hai alguns anos, na Parróquia de Budiã. Todos os da parróquia o vírom, menos o crego, que andava primeiro burlento, pero despois, havendo tantas testes, enrabejava quando lhe vinham com a nova de que se vira o corvo branco em tal terra. O corvo branco não era branco como a neve, que era meio amarelo, e andava polas sementeiras, e fugiam-lhe os outros corvos. Os senhoritos de Ferreira de Valedouro, que sempre os houvo ali com escopeta, saírom a caçá-lo, pero não lhe acertárom.
Hai gente que diz que o corvo não era tal corvo, senão um tal Pousada, de Gerdiz, prestamista. Uns desconhecidos entrárom na sua casa uma noite e queimárom todos os papéis e recibos que atopárom. Não levárom uma peseta. Comérom e bebérom, isso sim. Ao dia seguinte, o Pousada morreu. Dixo-se que um dos que queimaram os papéis fora um cura de perto de Viveiro, e que o fizo por caridade. A gente do país começou a decatar-se de que o corvo branco se via acarão das casas dos que lhe deviam quartos ao Pousada. Um xastre chamado Presas mandou dizer uma missa pola alma do Pousada, e o corvo partiu e não volveu a ser visto.
-Não berrava coma os outros corvos, dixo-me um de Muras. Eu não o ouvim, pro os que o ouvírom, imitavam-no mui bem. “Viiiiinde, viiinde! Chamaria polos quartos que tinha estrados por aí.
-E logo, os quartos ouvem?
-Ouvir, ouvirão ou não. O caso é que entenderam!

Pousada era coxo, viúvo e sem filhos. Tinha mais duma dúzia de relógios, de bolso e de pulseira, e sempre levava com ele três ou quatro. Seria para atender à pontualidade dos juros. Herdou-no uma sobrinha, que estava servindo em Barcelona. Veu recolher a herança acompanhada do seu pretendente, e merendava todos os dias de Deus péxego em almibre. A sobrinha não deu creto nengum às novas de que o corvo branco fora o seu tio Pousada”
O Corvo Branco contou ao Luar que, depois de lhe ser dita a missa polo xastre Pressas, sentiu como que uma lousa lhe deixava de esmagar as costas, sentiu-se livre e não voltou polo Valedouro...
-Agora -dixo- já não sinto aquela ânsia de ir atrás dos quartos, nem de pousar nos telhados das casas dos que me deviam dinheiro quando eu emprestava a juros. Quando a alma do Pousada de Gerdiz, usurário temido, se viu livre da sua cega cobiça, voa em liberdade no seu novo corpo albino e corvídeo.
Num dia destes hei-no traguer aqui para que nos fale de cousas e palavras que ouviu e conhece...
Deixa-vos, pois, polo de agora, o Luar de Janeiro, na boa companhia do Gascón. Para além dos textos orais do Corvo Branco, não deixedes de ouvir os que ali nos deixa o próprio Gascon, todos eles de uma oralidade excelente, expoente claro de que é possível existir um português galego com oralidade própria, lusófono, longe do sotaque decalcado do castelão que, impudicamente, costumam exibir os média controlados polo Poder, e demonstração clara de não ser preciso, para fugir dessa castelanização, imitar mimeticamente o falar lisboeta dos média portugueses. Existe uma oralidade lusófona galega como existe uma oralidade lusófona portuguesa, brasileira, etc, que deve ser conservada e elevada ao lugar que lhe corresponde.