segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Para uma ortofonia...

Já são horas de pensarmos que um modelo de língua culto, galego e lusófono, não é só escrever com correção, empregando a ortografia que ao galego cumpre, e que hoje utilizam não poucos galegos, quer na linha da AGLP, quer na linha AGAL, que já dixem que para mim são a mesma ortografia, e a mesma filosofia.

Implica escrever em galego com sintaxe galega, e não com giros e expressões decalcadas do castelão. Colocar bem os pronomes, por exemplo, usar bem os verbos, usar o léxico e fraseologia galegos (não mimeticamente coincidentes, por exemplo, com os portugueses ou brasileiros) Insisto: hai um bom português galego que temos a obriga de empregar com jeito, e isso não implica imitar mimeticamente o que se fala noutras áreas da lusofonia, do mesmo jeito que os espanhóis castelão-falantes não julgam como critério de correção a imitação absoluta dos falares doutras zonas da hispanofonia.

Ora, o perigo vem dado por escrever em português mas pensar em espanhol...

Disto já se tem falado davondo, e o professor F. Venâncio já leva tempo a abrir-nos os olhos defronte a esse perigo de julgar que por usarmos –nh-, -lh-, -m final e pouco mais somos ótimos utentes de português (de português galego ou não, tanto tem), porque não é assim. E já nos alertou do perigo de não sermos tomados a sério na própria lusofonia se continuarmos de olhos fechos a essa verdade...

Olho, pois, e a ler e a escrever português com jeito, e português dos galegos, o nosso português. Invistamos no galego que isso será em proveito do nosso português e da nossa inserção na lusofonia, sendo nós mesmos.

Ora, deixemos que o Venâncio continue a ensinar-nos essas e outras cousas, como já leva feito e espero continue a fazer (obrigado, Fernando), e falemos de ortofonia, de boa pronúncia.
De boa pronúncia já se tem falado em foros, e mesmo neste blogue alguma cousa já escrevim. Também escrevim algo sobre isto num número de Agália. Só quero lembrar que uma boa ajuda pode ser ouvir as gravações do Gascon no seu blogue Quanto mais ao longe...

A história consistiria, mais ou menos, em privilegiar aqueles traços galegos genuinos que as falas da Galiza ainda conservam e que, de maneira mais ou menos geral, vão sendo substituídos por outros traços castelanizantes, mesmo polos média que se exprimem em galego, do dito “oficial” ou não (na Espanha não hai normas oficiais, como atinadamente tem afirmado o Prof. António Gil Hernández, mas são impostas "de facto" e funcionam como se fossem tais, sem que nengum tribunal espanhol tenha provocado o final dessa situação). Cumpre, pois, evitarmos essa feição geral castelanizadora que se ouve no galego da TVG e que hoje é considerada em muitos âmbitos uma versão culta ou moderna do galego, em detrimento dos traços genuinos definidos como galego pailã, galego aldeão, inculto, atrasado. Galego genuino é associado com atraso, galego deturpado com modernidade... Temos de subverter essa ideia.

Dentro desses traços genuinos, privilegiando aqueles comuns com o resto da lusofonia, de maneira que os traços fonéticos do galego padrão (ou português da Galiza) viriam a coincidir com aqueles que em Portugal tenhem vindo a ser considerados, tradicionalmente, como próprios dos dialetos setentrionais e, paradoxalmente, também nesse país desvalorizados por arcaizantes ou divergentes com o falar da capital, de Lisboa, verdadeiro superestrato uniformizador da variedade dialetal portuguesa, como aqui já ficou dito (lembremos aquela citação que recentemente nos trazia à memória o professor F. Venâncio, sobre as "fezes do galiziano" que gramáticos e escritores se esforçavam por rejeitar, em referência aos traços arcaizantes e setentrionais)

Longe de teorizar sobre isto, é mais prático oferecer algumas “dicas” ou traços fundamentais caraterizadores desse falar padrão galego ideal:

-Vocalismo átono: em galego é marcadamente fechado, sem chegar a desaparecer como na variante padrão portuguesa, mas claramente relaxado, diferentemente do castelão padrão. Isto é especialmente claro nos “o” finais e pretónicos, bem como nos “e”, especialmente pretónicos, que soam praticamente “i” (político, cerimónia, soariam de maneira semelhante -não exatamente, mas quase- a "pulíticu", "cirimOnia")

-Vocalismo tónico: deve cuidar-se e manter-se a diferenciação entre vogais abertas e fechadas próprias do galego, e que no falar dos média são uniformadas como em castelão (infelizmente, também no galego de muitos reintegracionistas pouco cuidadosos com a língua)

-Vogais nasais: as vogais, em contato com nasal, nasalizam em muito maior medida que em castelão. Quanto aos ditongos nasais, podem-se fazer à portuguesa como fai o galego oriental em determinados dos seus falares (-ões, -ães, -ão –irmão-), se bem que na fala seja conveniente distinguir, como fam os falares da Galiza e mesmo -cada vez menos pola pressão do padrão lisboeta- alguns falares do Norte de Portugal (e não só) entre –om, -am, -ão (mesmo aceitando grafar tudo em –ão): irmão, pão, ladrão, soariam irmão, pam, ladrom...

Em todo o caso, uma vogal nasal como o –e- de quem, soaria aberta e muito mais nasalizada do que o –e- castelão de “quien”. Outro tanto aconteceria com as vogais nasalizadas de palavras como bem, cão (ou cam), com, ninguém, ladrão (ladrom)...

-Quanto aos ditongos decrescentes -ei-, -ou- bem marcados nos seus elementos vocálicos, longe das monotongações dos falares centro-meridionais portugueses, achegando-se o galego neste ponto, mais uma vez, aos falares setentrionais portugueses. E o primeiro elemento vocálico sempre fechado (lembremos como o ditongo -ei- nos falares lisboetas e, pore extensão, no padrão português soa aberto, quase -ai-, ao ponto de ser este traço, segundo a minha experiência, um facto que chamava poderosamente a atenção nos falantes da capital portuguesa quanto ao meu galego. Chegavam até a brincar com os meus "sêi", "hêi" carateristicamente fechados, e digo brincar, claro, sempre com a boa educação que os carateriza, muito longe da má educação que se costuma padecer noutros países como a própria Espanha)
-Os "e" de palavras como "tenho", "telha", fechados, defronte ao falar padrão e capitalino português, que os abre até quase "a" (tanhu, talha...) Essa vogal fechada etimológica, à galega, ouve-se claramente em falares portugueses como o meridional alentejano, ou os setentrionais.

Quanto às consoantes podemos estabelecer:

-X, G, J, devem soar bem palatalizados (a tendência dos média é muitas vezes despalatalizar: gente e já tendem a soar incorretamente nos média como sente, sa...), quer surdos os três, como é o geral na Galiza: deixar, gente, já, soariam deixar, xente, xa; quer conservando a sonoridade histórica de –g- e –j-, como é próprio de falares galegos meridionais e do resto da lusofonia: assim, o –x- de deixar, soaria surdo, o g- e j- de gente e já, soaria bem palatalizado, e sonoro. Esta última pronúncia tem a vantagem de nos achegar à lusofonia e ser galega histórica, se bem que difícil de assumir, sem dúvida, por muitos falantes acostumados à pronúncia geral galega que perdeu as sibilantes sonoras. A meu ver, corretas são as duas, mas a primeira (distinção surda/sonora) é, ao menos, recomendável.

-Preferência pola pronúncia não interdentalizada de ç-a, o; c-e, i, e z, quer dizer, preferência polo mal chamado “sesseio” deixando o thetathismo para o falar mais coloquial e mais interno. Cedo, zona, soariam como “sedo”, “sona”. Ora, podendo manter também aqui a sonoridade histórica e do resto da lusofonia no caso de fazer, zona, e também de cousa (sonoras), defronte a assar (surda) e cedo (surda)  Esta distinção mantendo a sonoridade em fazer, cousa, defronte a assar, cedo (surdas), é própria também de falas meridionais galegas e da língua histórica, e pode considerar-se, polo menos, recomendável...

-Confusão b/v: ambas as duas bilabiais. Como no Norte de Portugal.

-Pronúncia nortenha, africada, do ch: chamar, chorar (txamar, txorar), defronte à pronúncia meridional portuguesa e hoje praticamente geral em Portugal (xamar, xorar) a não ser alguns falares rurais e setentrionais que a conservam africada como em galego.

-o –m final pronunciaria-se como nasal, velar, em lugar de alveolar como em castelão: em Ares distinguiria-se de Henares, a diferença do espanhol, sempre com a vogal precedente fortemente nasalada. Isto diferenciaria a pronúncia de palavras como bem, alguém, ninguém, que soariam sem o ditongo nasal final próprio do português. Em galego essas palavras soariam com uma consoante nasal final próxima do inglês –ing em palavras como thing, (bEng, alguEng, ninguEng), em lugar do ditongo nasal português (beim, algueim, ningueim/baim, algaim, ningaim) E sempre, não se esqueça, em galego a vogal precedente fortemente nasalada, muito mais do que em espanhol.

-Quanto ao “r” forte, a pronúncia galega é a tradicional portuguesa, alveolar e não velar: ferro, carro... Em Portugal é sabido como a pronúncia moderna, velar, ganha terreio de geração para geração.

-O –l final em galego popular é velarizado, não tanto como no galego de Portugal ou no Brasil, onde chega mesmo a vocalizar, mas velarizado. Isto podemo-lo comprovar ouvindo com atenção pessoas galego-falantes de zonas rurais, ainda quando falam castelão. Naturalmente o galego TVG ou o galego de pessoas urbanas que não se esforçam em falar bem não cuida esse traço, e isso é aplicável a muitos reintegracionistas.
-A gheada (ghalo, amigho), como traço que nos afasta da lusofonia, não teria cabimento nesse padrão galego que estamos a construir. Em chave interna, podemos aceitar a nível muito coloquial ou popular, uma gheada suave, verdadeiramente aspirada, longe do "j" castelão em que muitas vezes se converte por influência dessa língua no galego.
-A pronúncia de -lh- deve ser lateralizada, como na prática totalidade dos falares portugueses, com alguma exceção explicável por castelanismo (Campomaior) e como, aliás, é próprio do falar tradicional do espanhol, hoje já em recuo. Deve ser rejeitado, já que logo, o chamado "yeísmo" ou a deslateralização de -lh-, por ser claro espanholismo.
Com efeito, a pronúncia tradicional espanhola, coincidente com a portuguesa, recua claramente na Espanha, nas zonas urbanas e entre falantes novos, mas ainda pervive em zonas rurais de áreas que claramente são tidas por "yeístas". Na Galiza também é pronúncia viva ainda em áreas rurais e em pessoas idosas. Nas zonas urbanas e em pessoas mais novas o "yeísmo" ou deslateralização não só afetou à pronúncia de -lh- mas também do elemento semivocálico -i- em palavras como "Maio". E assim, cai a lateral em "malho", substituída por um elemento consonântico que substitui, por sua vez, o elemento semivocálico de "Maio" de maneira que "Maio" e "malho" passam, ambas as duas, confundidas, para "mayo", empobrecendo a fonética do galego.
Estas pronúncias devem ser rejeitadas, mantendo claramente a diferença tradicional entre "malho", lateral, e "Maio" semiconsoante, o qual nos achegará à lusofonia e nos manterá fieis à língua histórica.
Apontaremos, finalmente, que também em falas brasileiras ocorre alguma deslateralização ("muié" por "mulher"), cousa que não legitima que em galego optemos por estas pronúncias.

Com o dito avonda para definir as linhas chaves para uma pronúncia galega, lusófona e cuidada... Porém, para desgraça nossa, nem sempre ser reintegracionista é sinónimo de usar uma linguagem correta. E isto devia envergonhar-nos e fazer com que reflectíssemos e cuidássemos mais o nosso falar e o nosso escrever...

P.S.: Hai alguma cousa que, após ter lançado a postagem, devia pontualizar. Essa pronúncia que nas linhas precedentes ficou definida seria a pronúncia ideal. Nela, hai traços urgentíssimos, como o vocalismo, outros, cuja adoção não é tão urgente, cuja imediata adoção seria matizável. O exemplo mais claro é o da eliminação do thetathismo em palavras como "cedo" ou "fazer". Com efeito, a pronúncia thetathista é traço muito estendido mesmo em falantes cuja fonética é ótima, e para muitas pessoas seria complicado eliminá-lo (nem todas as pessoas tenhem o mesmo ouvido linguístico ou facilidade para reproduzirem uma pronúncia, o mal chamado "sesseio", que não soasse artificiosa) Em todo o caso, mesmo pensando no futuro ideal, podia deixar-se a eliminação desse thetathismo só para contextos internacionais lusófonos, mantendo-o como pronúncia opcional interna galega... sempre recomendando a sua eliminaçao ou "sesseio" (mal chamado), mas matizando a urgência da universalização desse "sesseio", muito recomendável por harmonizar com a Lusofonia, mas complicado na Galiza, quer para a maioria do povo, quer para os reintegracionistas mais conscientes, a não ser alguns que o tenhem na sua fala nativa, como é o caso do Carlos Durão, por exemplo, e outros que, pola sua formação linguística, lhes é doado mudar a sua fala neste ponto. É claro que o ideal seria, no futuro, universalizar essa pronúncia que nos achega mais à lusofonia, mas hai outros traços que me parecem mais urgentes para evitar essa ideia de galego deturpado que nos transmitem os média e muitos falantes, entre eles os reintegracionistas. Cumpre muito realismo e muito tino, muito didatismo, para as pessoas alheias ao reintegracionismo se achegarem a nós e considerarem ao sério as nossas propostas. Já dixem noutra ocasião como o excessivo radicalismo, dogmatismo ou mesmo agressividade ou carga ideológica, podem afastar, como de facto afastam, muitas pessoas de nós, cousa que nem devemos nem podemos permitir, em bem do galego e da Galiza...