quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Cervantes, terra de cervos...

O Luar já estivo na terra ancaresa. Os Ancares, terra de ursos e lobos... outrora..., que hoje, ficar, apenas alguns ursos que baixam das Astúrias, e alguns lobos, pero nada que de longe se pareça com a vigorosa povoação da serra da Culebra samorana ou das serras leonesas, asturianas ou trasmontanas.
Perto dos Ancares são as serras d'O Courel, as terras altas e soas que o grande poeta courelão, Uxio Novoneyra, cantou com força inigualável. Entre Os Ancares e O Courel são as terras d'O Cebreiro, conhecidas por, através delas, passar o chamado "Caminho Francês" dos que vão morrer a Compostela.
São Ancares, Courel, Cebreiro... terras de alta montanha, que fazem parte do sistema das serras orientais galegas, prolongação das montanhas cantábricas, terras que a emigração no seu dia dizimou, terras érmedas (ermas) que chamou aquele poeta.
Na sua mais terna juventude o Luar chegou a quase conhecer de memória (de cor) muitos dos poemas do livro do grande poeta do Courel, Uxio Novoneyra, intitulado Os Eidos... E como este Luar mora em terra montesia, pois Paradela de Mouros, de que já falarei noutro dia, é terra de altas penedias e faralhões, rochedos e cumes nevados onde só o corço e o lobo conseguem chegar, galgando, rubindo (no verdadeiro sentido que essa palavra tem em português galego) polas encostas e falésias quase verticais que se erguem cara ao céu, hoje tivo saudades desse tempo e das sensações que a leitura dos versos do poeta da montanha lhe causavam no seu, daquela, terno e inocente espírito quase selvagem...
E chegárom-lhe à lembrança aqueles dous primeiros versos... (peço desculpa por mudar a ortografia, que não a peculiar feitura do galego caurelão em que o autor se exprime)

Courel dos tesos cumes que olham de longe...
Aqui sinte-se bem o pouco que é um home.

E continua:

Terras érmedas do Freixeiro,
montes irados!
povos pobres
que se fôrom quedando nos ossos.

Ou aquela  poesia em que evoca os sons e o cheiro à terra húmida e fria, que emana da toponimia com que o home agarimou a Terra nomeando-a (lede com evocação quase religiosa):

Heim d'ir ao Pía Páxaro e à Boca do Faro
deitar-me na Campa da Lucença num claro.
Heim d'ir à Devesa da Rogueira e a Donis
ao Rebolo à Pinça e ao Chão dos Carris.
Heim d'ir a Lousada e a Pácios do Senhor
a Santalha a Veiga de Forcas e a Fonlor.
Heim d'ir ao Cebreiro passar por Linhares
rubir ao Iríbio a Cervantes e a Ancares
Heim d'ir a Cido e a Castro de Brio
baixar e andar pola aurela do rio.
Heim d'ir a Céramo cruza-lo Faro e entom
debrocar pra baixo cara Oéncia e Leom.
Heim d'ir a Vales e a Pena da Aireja
e a un eido só onde ninguém me veja.
 
Juro por todos os deuses dos céus, polos que hai e polos que houvo ou haja de haver,  que não mudei nada do galego caurelão do autor, a não ser o castelanismo solo, solas por, sem prejuiço da contagem silábica, ser possível passar para os galegos e soas.
 
E, permitide-me que ainda vos ponha estoutros, onde a incrível combinação de sufixos e jogos de palavras parece trazer-nos, mesmo defronte dos olhos, o paxarinho a brincar na ponta da rama...
 
No bicarelo do bico do brelo
canta o paxarinho
no mesminho
bicarelo do bico do brelo.

Permitide, ainda:

Terras altas e soas,
serras longas, mouras,
eu som esta cor de soida'

Ancares sonhados c'o longe!
Penas de Marco de Médio Mundo em ringuileira,
do Candedo às Moás.

Cimo da Devesa!
Alto da Lucença,
Formigueiros, Montouto, Pia Páxaro,
tesos cumes do Courel!
povos pobres
ardidos de tristura, mouros de queimados!
Lor rugindo polo val' pecho!

Uzedo e uzedo!
fontinhas outas 
penedos
carroços escuros
fragas, agros, soutos e devesas! 

Referência:
-Novoneyra, Uxío (1981): Os Eidos. Libro do Courel (Vigo: Edicións Xerais de Galicia)

Enfim, o Luar pensava falar de Cervantes, terra de cervos, e acabou por falar de Uxio Novoneyra, poeta que fizo com que o Luar revivesse tempos fugidos no nevoeiro do passado, no nevoeiro de uma terra, Paradela, em que os cumes ultrapassavam as nuves e tocavam o céu, cujas gentes parece que tinham certos poderes vindos de não se sabe onde, como o serem quem de falar sem palavras ou, dito doutra maneira, de ler o pensamento. Isto não é cousa verificável hoje, porque já não mora ninguém naquelas aldeias e os descendentes dos que se fôrom já perdêrom esse dom, se é que os seus antergos alguma vez o tiveram, porque não hai evidências nem factos constatáveis, a não ser as longínquas recordações dalgumas pessoas, netos ou bisnetos dos antigos moradores... e certo conto que anda por aí, escrito por um louco que se fazia chamar a si próprio Luar de Janeiro, nome que roubou do verdadeiro Luar que escreve estas linhas,  sem a autorização do seu legítimo dono.
Como o verdadeiro Luar de Janeiro não se importou demais com a usurpação -pois, ao cabo, à vista ficará quem alumia melhor e com luz mais prateada e mais pura nas noites do Janeiro- perdoou ao impostor e ambos os dous luares, o falso e o verdadeiro, acabárom por ficar amigos... Talvez, algum dia, o falso venha convidado, com o seu conto sobre Paradela, e queira vertê-lo aqui.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

De traduções do Quixote, do português de Olivença, o galego e outras cousas...

Hai tempo que o Luar quer escrever alguma cousa sobre a língua e não sabe o quê. Pensou em falar de como leu o Quixote na sua língua (quer dizer, em portuguesa língua), da mão dos Viscondes de Castilho e Azevedo, que o traduzírom da saborosa prosa do seu autor, um tal Cervantes, de origem galega (O Luar já estivo em Cervantes, concelho da luguesa terra d'Os Ancares, terra viçosa e farturenta de carvalheiras, faiais, loureiros, verde rechamante nas encostas que acarinham a relva das valinhas e ribeiros que molham as suas terras, de onde diz-que provém a família do grande escritor...)
A seguir, o Luar leu o prólogo que, na versão portuguesa de Aquilino Ribeiro, critica a versão feita por estes viscondes, à qual apõe alguns defeitos de tradução, duma banda, traduzindo demais, por vezes, ao pé da letra e introduzindo, portanto, termos castelanizantes no português, doutra, dotando à portuguesa prosa de um estilo excessivamente pomposo, gongórico ("...De tempos a tempos -diz- empolgado pela ênfase dos pregadores e gongóricos de má morte, dá-nos um Cervantes tiré a quatre épingles, arrevesado e pomposo.")... O Luar não puido evitar certa deceção ao ler essa crítica, e pensou que o Quixote que acabava de ler provavelmente perdera, sim, boa parte do sabor original. E como também sabe e fala castelão, começou a ler a correspondente versão saída da pena cervantina e concordou em que assim era, mas... o quê dizer, provavelmente qualquer tradução deitaria pola mesma ferida, quer dizer, daria na mesma eiva... Ou não...
Veu à lembrança do Luar um artigo, divertido, engenhoso, irónico, do original João Guisão Seixas, sim, aquele autor de teatro que era censurado na Galiza por escrever em normativa reintegrada e que apresentou um texto literário em português de Portugal num concurso literário do Eixo Atlântico que admitia textos em galego RAG-ILG e em português de Portugal, com um júri entre cujos membros figuravam membros do ILG que, sem saberem quem premiavam, deram o primeiro prémio a esse autor... Pois esse, digo, publicou no número 52 da revista Agália um artigo intitulado "Malditas Palavras", a falar do galego, de Valle Inclán e das traduções das suas obras. Lúcido artigo cuja leitura recomendo a todos os que isto lerem.
Entre outras cousas, vinha a dizer que a prosa castelã de Valle poderia ser facilmente traduzível para português, distinguindo entre aquela prosa descritiva, cuja tradução não oferece maiores dificuldades e aquele castelão genialmente criado por ele para, nesse idioma, exprimir o feitio e o jeito das pessoas do povo a se exprimirem em galego. Para isto, dizia, nada melhor que procurar um registo português popular e arcaizante, tipo minhoto ou transmontano, que verteria em português aquele jeito de dizer de sabor arcaico que tinha esse castelão com que Valle recria o galego. E, faltava, porém, para dar a esse português popular nortenho, agalegado, a marca definitiva de galeguidade, com enfeitar esse falar popular, inserindo aqui e acolá alguma mostra de aquela cheia de castelanismos que os galegos costumam empregar quando no seu vernáculo se exprimem...
Ora, pensou o Luar, para além do já dito, no Quixote que leu reparou em que a tradução perde aquela mistura de estilos que carateriza o original, porque Cervantes põe em boca de D. Quixote um estilo propositadamente arcaizante, que na época deveu ser muito bem percebido polos contemporâneos que lérom a obra, e muito divertido para eles, conseguindo o efeito irónico que o autor procurava, com variantes já desusadas na altura, mas ainda sentidas como antiquadas polos falantes castelãos da época. Assim, quando nesse tempo se dizia "no huyáis", Cervantes fai ao seu Quixote dizer "Non fuyades". Tudo isto desaparece na tradução portuguesa que fai dizer a uns e outros "Não fujais"...
Quiçais um tradutor galego, bom conhecedor da sua língua e das suas variantes diacrónicas e territoriais, possa imprimir essa marca arcaizante no falar do entranhável cavaleiro, de maneira que onde todos os personagens dixessem "Não fujais", "coisa", "dois", Dom Quixote poderia dizer, à galega e à antiga, "Nom fujades", "cousa", "dous"...
Ao fio destas cismadelas, o Luar lembrou-se dum seu amigo, francelho ele, que andou por terras oliventinas e lhe falou de um trabalho que leu sobre o português oliventino, em que se estudavam comparativamente os falares de Olivença e Campomaior (podede-lo ver nos enlaces à direita, em baixo) Esse francelho falou assim ao Luar quando ouviu que este falava o português galego:
-É incrível, meu neno, como a língua é a mesma. Os fenómenos linguísticos repetem-se de Norte a Sul. Os fenómenos pretensamente exclusivos galegos não só se podem achar (cada vez menos, bem certo é, porque o português de Lisboa vai varrendo com tudo) no Norte de Portugal, pois que aqui no Sul também existem. Cousas curiosíssimas. Pensa em variantes do tipo comeu-no, levou-no, na forma pronominal le em lugar de lhe, mais velhos ca mim, flexão do gerúndio -comêndomos- formas verbais acabadas em -om (fôrom), ausência de -i- antiiático -arêa em lugar de areia-, e outros.
Ora, o mais arrepiante, -dizia-, é como perante a pressão do espanhol, o sistema racha pelos mesmos pontos, e vemos no falar oliventino castelanismos análogos aos que inçam os falares da Galiza, por exemplo, colocação dos pronomes clíticos à espanhola (me disse que fosse por disse-me que fosse) ausência de infinitivo pessoal, sufixo -ción, sión, etc)
Realmente é uma só língua -concluía o amigo francelho- o que se fala acima e abaixo.
E o francelho também lembra como nesse trabalho que leu sobre o português de Olivença, o autor diz não ter ouvido nem gravado a pretensa forma -benté-de que lhe falaram alguns oliventinos.
-Aí, -dixo o francelho-, o autor erra, porque na obra que ele próprio cita de Manuela Florêncio sobre o dialeto alentejano, essa forma aparece recolhida por Leite de Vasconcelos em Alandroal, o que prova ela não ser inventada, imaginada ou mal ouvida, e que deve ter presença em Olivença.
Nestas andava assim falando quando se lembrou de que tinha que partir...
-Já o V'rão vai no fim... e hei de, ainda, atingir as terras africanas, atravessar o Saara, para passar o Inverno nas sabanas mais ao Sul. Talvez até atravesse as selvas tropicais para chegar ao extremo Sul desse continente, onde as termitas voadoras não deixarão de me fornecer de boa substância alimentar da que aqui me já vai faltando... Adeus! Até à Primavera!
-Boa invernada -dixo-lhe o Luar-, vai a modo, e olha que tenhas jeito com os inseticidas, não me vaias afogar com tanta contaminação! Espero ver-te no Fev'reiro próximo!
O francelho ergueu o voo, rumou cara ao Sul, e já não no vim mais. Oxalá volte prò ano e conte mais do que viu e ouviu acô embaixo.