terça-feira, 7 de setembro de 2010

De traduções do Quixote, do português de Olivença, o galego e outras cousas...

Hai tempo que o Luar quer escrever alguma cousa sobre a língua e não sabe o quê. Pensou em falar de como leu o Quixote na sua língua (quer dizer, em portuguesa língua), da mão dos Viscondes de Castilho e Azevedo, que o traduzírom da saborosa prosa do seu autor, um tal Cervantes, de origem galega (O Luar já estivo em Cervantes, concelho da luguesa terra d'Os Ancares, terra viçosa e farturenta de carvalheiras, faiais, loureiros, verde rechamante nas encostas que acarinham a relva das valinhas e ribeiros que molham as suas terras, de onde diz-que provém a família do grande escritor...)
A seguir, o Luar leu o prólogo que, na versão portuguesa de Aquilino Ribeiro, critica a versão feita por estes viscondes, à qual apõe alguns defeitos de tradução, duma banda, traduzindo demais, por vezes, ao pé da letra e introduzindo, portanto, termos castelanizantes no português, doutra, dotando à portuguesa prosa de um estilo excessivamente pomposo, gongórico ("...De tempos a tempos -diz- empolgado pela ênfase dos pregadores e gongóricos de má morte, dá-nos um Cervantes tiré a quatre épingles, arrevesado e pomposo.")... O Luar não puido evitar certa deceção ao ler essa crítica, e pensou que o Quixote que acabava de ler provavelmente perdera, sim, boa parte do sabor original. E como também sabe e fala castelão, começou a ler a correspondente versão saída da pena cervantina e concordou em que assim era, mas... o quê dizer, provavelmente qualquer tradução deitaria pola mesma ferida, quer dizer, daria na mesma eiva... Ou não...
Veu à lembrança do Luar um artigo, divertido, engenhoso, irónico, do original João Guisão Seixas, sim, aquele autor de teatro que era censurado na Galiza por escrever em normativa reintegrada e que apresentou um texto literário em português de Portugal num concurso literário do Eixo Atlântico que admitia textos em galego RAG-ILG e em português de Portugal, com um júri entre cujos membros figuravam membros do ILG que, sem saberem quem premiavam, deram o primeiro prémio a esse autor... Pois esse, digo, publicou no número 52 da revista Agália um artigo intitulado "Malditas Palavras", a falar do galego, de Valle Inclán e das traduções das suas obras. Lúcido artigo cuja leitura recomendo a todos os que isto lerem.
Entre outras cousas, vinha a dizer que a prosa castelã de Valle poderia ser facilmente traduzível para português, distinguindo entre aquela prosa descritiva, cuja tradução não oferece maiores dificuldades e aquele castelão genialmente criado por ele para, nesse idioma, exprimir o feitio e o jeito das pessoas do povo a se exprimirem em galego. Para isto, dizia, nada melhor que procurar um registo português popular e arcaizante, tipo minhoto ou transmontano, que verteria em português aquele jeito de dizer de sabor arcaico que tinha esse castelão com que Valle recria o galego. E, faltava, porém, para dar a esse português popular nortenho, agalegado, a marca definitiva de galeguidade, com enfeitar esse falar popular, inserindo aqui e acolá alguma mostra de aquela cheia de castelanismos que os galegos costumam empregar quando no seu vernáculo se exprimem...
Ora, pensou o Luar, para além do já dito, no Quixote que leu reparou em que a tradução perde aquela mistura de estilos que carateriza o original, porque Cervantes põe em boca de D. Quixote um estilo propositadamente arcaizante, que na época deveu ser muito bem percebido polos contemporâneos que lérom a obra, e muito divertido para eles, conseguindo o efeito irónico que o autor procurava, com variantes já desusadas na altura, mas ainda sentidas como antiquadas polos falantes castelãos da época. Assim, quando nesse tempo se dizia "no huyáis", Cervantes fai ao seu Quixote dizer "Non fuyades". Tudo isto desaparece na tradução portuguesa que fai dizer a uns e outros "Não fujais"...
Quiçais um tradutor galego, bom conhecedor da sua língua e das suas variantes diacrónicas e territoriais, possa imprimir essa marca arcaizante no falar do entranhável cavaleiro, de maneira que onde todos os personagens dixessem "Não fujais", "coisa", "dois", Dom Quixote poderia dizer, à galega e à antiga, "Nom fujades", "cousa", "dous"...
Ao fio destas cismadelas, o Luar lembrou-se dum seu amigo, francelho ele, que andou por terras oliventinas e lhe falou de um trabalho que leu sobre o português oliventino, em que se estudavam comparativamente os falares de Olivença e Campomaior (podede-lo ver nos enlaces à direita, em baixo) Esse francelho falou assim ao Luar quando ouviu que este falava o português galego:
-É incrível, meu neno, como a língua é a mesma. Os fenómenos linguísticos repetem-se de Norte a Sul. Os fenómenos pretensamente exclusivos galegos não só se podem achar (cada vez menos, bem certo é, porque o português de Lisboa vai varrendo com tudo) no Norte de Portugal, pois que aqui no Sul também existem. Cousas curiosíssimas. Pensa em variantes do tipo comeu-no, levou-no, na forma pronominal le em lugar de lhe, mais velhos ca mim, flexão do gerúndio -comêndomos- formas verbais acabadas em -om (fôrom), ausência de -i- antiiático -arêa em lugar de areia-, e outros.
Ora, o mais arrepiante, -dizia-, é como perante a pressão do espanhol, o sistema racha pelos mesmos pontos, e vemos no falar oliventino castelanismos análogos aos que inçam os falares da Galiza, por exemplo, colocação dos pronomes clíticos à espanhola (me disse que fosse por disse-me que fosse) ausência de infinitivo pessoal, sufixo -ción, sión, etc)
Realmente é uma só língua -concluía o amigo francelho- o que se fala acima e abaixo.
E o francelho também lembra como nesse trabalho que leu sobre o português de Olivença, o autor diz não ter ouvido nem gravado a pretensa forma -benté-de que lhe falaram alguns oliventinos.
-Aí, -dixo o francelho-, o autor erra, porque na obra que ele próprio cita de Manuela Florêncio sobre o dialeto alentejano, essa forma aparece recolhida por Leite de Vasconcelos em Alandroal, o que prova ela não ser inventada, imaginada ou mal ouvida, e que deve ter presença em Olivença.
Nestas andava assim falando quando se lembrou de que tinha que partir...
-Já o V'rão vai no fim... e hei de, ainda, atingir as terras africanas, atravessar o Saara, para passar o Inverno nas sabanas mais ao Sul. Talvez até atravesse as selvas tropicais para chegar ao extremo Sul desse continente, onde as termitas voadoras não deixarão de me fornecer de boa substância alimentar da que aqui me já vai faltando... Adeus! Até à Primavera!
-Boa invernada -dixo-lhe o Luar-, vai a modo, e olha que tenhas jeito com os inseticidas, não me vaias afogar com tanta contaminação! Espero ver-te no Fev'reiro próximo!
O francelho ergueu o voo, rumou cara ao Sul, e já não no vim mais. Oxalá volte prò ano e conte mais do que viu e ouviu acô embaixo.

4 comentários:

Venâncio disse...

Interessantíssima, essa pesquisa da tradução do «Quixote» pelos viscondes (António e José) Castilho e a sua apreciação por Aquilino. Vale a pena ir verificar esses castelhanismos.

Por outro lado, uma tradução "arcaizante" pode ser feita a partir do próprio modelo de língua português, no seu acervo galego-português. O português e o galego partilham um imenso vocabulário, e nele há suficiente material "arcaizante" utilizável pare esse fim.

Acrescento que o «Quixote» foi recentemente traduzido por José Bento, o melhor tradutor português de castelhano. Mais um bom terreno de pesquisa, que já me cria água na boca. Graças ao seu revisor, Helder Guégués (que tem o magnífico blogue http://letratura.blogspot.com/), sei que a tradução foi cuidadosíssima.

Obrigado, Luar, pelas sugestões.

Venâncio disse...

Só mais isto: uma edição do «Quixote» em galego, com ortografia portuguesa (mas sem a imitação servil, de certo extremismo, do modelo de língua português) é, em si, uma ideia luminosa. Mas levanta dois problemas, pelo menos.

Primeiro, um tal empreendimento exige uma importante disponibilidade financeira do editor e a disponibilidade pessoal e capacidade profissional dum tradutor. E isso é um puro sonho no estado actual das coisas.

Segundo, essa iniciativa tem um lado perverso, ao "confirmar" o galego como português à antiga. Ora bem, o galego é em primeiro lugar um modelo de língua MODERNO, e essa imagem deve ser mantida e perseguida. Os galegos que desistem de investir na modernização do galego, ou pela debandada rumo ao castelhano, ou pela debandada rumo ao português, são uns pobres de espírito.

Luar de Janeiro disse...

Várias cousas: Aquilino verte esses comentários no prólogo da tradução que ele faz do D. Quixote, a editora é, creio lembrar, Bertrand Editora (vou procurar melhor para dar a referência). Entre os castelanismos que denuncia: venda em lugar de estalagem (Cervantes escreveu, em castelão, "venta"), ou roto em lugar de maltrapilho (traduçao literal do original castelao "roto") e outros.
Quanto ao facto de a tradução, respeitando a língua arcaica de D. Quixote poder ser feita, sim, a partir do próprio modelo de língua do português, concordo. Eu dizia, ou queria dizer, que talvez um galego (não necessariamente um galego, mas um galego podia ser) com bons conhecimentos da diacronia do galego-português e do espanhol seria pessoa especialmente indicada (não a única, naturalmente) para a fazer.
Em tudo o mais concordo...
E, claro, irei procurar a tradução de José Bento, que espero tenha tido em conta a língua arcaizante do verbo do nosso cavaleiro, para verter em português esse arcaísmo.
Gostava de saber a editora da traduçao do José Bento, se fosse possível.
E quanto ao perigo do galego como português arcaizante, concordo.

Venâncio disse...

Vejo que a edição traduzida por José Bento é da editora Relógio d'Água, de 2005, com reedição em 2007.

Existe bastante informação em

http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2243166

(a descarregar, ou "sacar", como dizem os mais jovens)

e em

http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7587.pdf