segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Para uma ortofonia...

Já são horas de pensarmos que um modelo de língua culto, galego e lusófono, não é só escrever com correção, empregando a ortografia que ao galego cumpre, e que hoje utilizam não poucos galegos, quer na linha da AGLP, quer na linha AGAL, que já dixem que para mim são a mesma ortografia, e a mesma filosofia.

Implica escrever em galego com sintaxe galega, e não com giros e expressões decalcadas do castelão. Colocar bem os pronomes, por exemplo, usar bem os verbos, usar o léxico e fraseologia galegos (não mimeticamente coincidentes, por exemplo, com os portugueses ou brasileiros) Insisto: hai um bom português galego que temos a obriga de empregar com jeito, e isso não implica imitar mimeticamente o que se fala noutras áreas da lusofonia, do mesmo jeito que os espanhóis castelão-falantes não julgam como critério de correção a imitação absoluta dos falares doutras zonas da hispanofonia.

Ora, o perigo vem dado por escrever em português mas pensar em espanhol...

Disto já se tem falado davondo, e o professor F. Venâncio já leva tempo a abrir-nos os olhos defronte a esse perigo de julgar que por usarmos –nh-, -lh-, -m final e pouco mais somos ótimos utentes de português (de português galego ou não, tanto tem), porque não é assim. E já nos alertou do perigo de não sermos tomados a sério na própria lusofonia se continuarmos de olhos fechos a essa verdade...

Olho, pois, e a ler e a escrever português com jeito, e português dos galegos, o nosso português. Invistamos no galego que isso será em proveito do nosso português e da nossa inserção na lusofonia, sendo nós mesmos.

Ora, deixemos que o Venâncio continue a ensinar-nos essas e outras cousas, como já leva feito e espero continue a fazer (obrigado, Fernando), e falemos de ortofonia, de boa pronúncia.
De boa pronúncia já se tem falado em foros, e mesmo neste blogue alguma cousa já escrevim. Também escrevim algo sobre isto num número de Agália. Só quero lembrar que uma boa ajuda pode ser ouvir as gravações do Gascon no seu blogue Quanto mais ao longe...

A história consistiria, mais ou menos, em privilegiar aqueles traços galegos genuinos que as falas da Galiza ainda conservam e que, de maneira mais ou menos geral, vão sendo substituídos por outros traços castelanizantes, mesmo polos média que se exprimem em galego, do dito “oficial” ou não (na Espanha não hai normas oficiais, como atinadamente tem afirmado o Prof. António Gil Hernández, mas são impostas "de facto" e funcionam como se fossem tais, sem que nengum tribunal espanhol tenha provocado o final dessa situação). Cumpre, pois, evitarmos essa feição geral castelanizadora que se ouve no galego da TVG e que hoje é considerada em muitos âmbitos uma versão culta ou moderna do galego, em detrimento dos traços genuinos definidos como galego pailã, galego aldeão, inculto, atrasado. Galego genuino é associado com atraso, galego deturpado com modernidade... Temos de subverter essa ideia.

Dentro desses traços genuinos, privilegiando aqueles comuns com o resto da lusofonia, de maneira que os traços fonéticos do galego padrão (ou português da Galiza) viriam a coincidir com aqueles que em Portugal tenhem vindo a ser considerados, tradicionalmente, como próprios dos dialetos setentrionais e, paradoxalmente, também nesse país desvalorizados por arcaizantes ou divergentes com o falar da capital, de Lisboa, verdadeiro superestrato uniformizador da variedade dialetal portuguesa, como aqui já ficou dito (lembremos aquela citação que recentemente nos trazia à memória o professor F. Venâncio, sobre as "fezes do galiziano" que gramáticos e escritores se esforçavam por rejeitar, em referência aos traços arcaizantes e setentrionais)

Longe de teorizar sobre isto, é mais prático oferecer algumas “dicas” ou traços fundamentais caraterizadores desse falar padrão galego ideal:

-Vocalismo átono: em galego é marcadamente fechado, sem chegar a desaparecer como na variante padrão portuguesa, mas claramente relaxado, diferentemente do castelão padrão. Isto é especialmente claro nos “o” finais e pretónicos, bem como nos “e”, especialmente pretónicos, que soam praticamente “i” (político, cerimónia, soariam de maneira semelhante -não exatamente, mas quase- a "pulíticu", "cirimOnia")

-Vocalismo tónico: deve cuidar-se e manter-se a diferenciação entre vogais abertas e fechadas próprias do galego, e que no falar dos média são uniformadas como em castelão (infelizmente, também no galego de muitos reintegracionistas pouco cuidadosos com a língua)

-Vogais nasais: as vogais, em contato com nasal, nasalizam em muito maior medida que em castelão. Quanto aos ditongos nasais, podem-se fazer à portuguesa como fai o galego oriental em determinados dos seus falares (-ões, -ães, -ão –irmão-), se bem que na fala seja conveniente distinguir, como fam os falares da Galiza e mesmo -cada vez menos pola pressão do padrão lisboeta- alguns falares do Norte de Portugal (e não só) entre –om, -am, -ão (mesmo aceitando grafar tudo em –ão): irmão, pão, ladrão, soariam irmão, pam, ladrom...

Em todo o caso, uma vogal nasal como o –e- de quem, soaria aberta e muito mais nasalizada do que o –e- castelão de “quien”. Outro tanto aconteceria com as vogais nasalizadas de palavras como bem, cão (ou cam), com, ninguém, ladrão (ladrom)...

-Quanto aos ditongos decrescentes -ei-, -ou- bem marcados nos seus elementos vocálicos, longe das monotongações dos falares centro-meridionais portugueses, achegando-se o galego neste ponto, mais uma vez, aos falares setentrionais portugueses. E o primeiro elemento vocálico sempre fechado (lembremos como o ditongo -ei- nos falares lisboetas e, pore extensão, no padrão português soa aberto, quase -ai-, ao ponto de ser este traço, segundo a minha experiência, um facto que chamava poderosamente a atenção nos falantes da capital portuguesa quanto ao meu galego. Chegavam até a brincar com os meus "sêi", "hêi" carateristicamente fechados, e digo brincar, claro, sempre com a boa educação que os carateriza, muito longe da má educação que se costuma padecer noutros países como a própria Espanha)
-Os "e" de palavras como "tenho", "telha", fechados, defronte ao falar padrão e capitalino português, que os abre até quase "a" (tanhu, talha...) Essa vogal fechada etimológica, à galega, ouve-se claramente em falares portugueses como o meridional alentejano, ou os setentrionais.

Quanto às consoantes podemos estabelecer:

-X, G, J, devem soar bem palatalizados (a tendência dos média é muitas vezes despalatalizar: gente e já tendem a soar incorretamente nos média como sente, sa...), quer surdos os três, como é o geral na Galiza: deixar, gente, já, soariam deixar, xente, xa; quer conservando a sonoridade histórica de –g- e –j-, como é próprio de falares galegos meridionais e do resto da lusofonia: assim, o –x- de deixar, soaria surdo, o g- e j- de gente e já, soaria bem palatalizado, e sonoro. Esta última pronúncia tem a vantagem de nos achegar à lusofonia e ser galega histórica, se bem que difícil de assumir, sem dúvida, por muitos falantes acostumados à pronúncia geral galega que perdeu as sibilantes sonoras. A meu ver, corretas são as duas, mas a primeira (distinção surda/sonora) é, ao menos, recomendável.

-Preferência pola pronúncia não interdentalizada de ç-a, o; c-e, i, e z, quer dizer, preferência polo mal chamado “sesseio” deixando o thetathismo para o falar mais coloquial e mais interno. Cedo, zona, soariam como “sedo”, “sona”. Ora, podendo manter também aqui a sonoridade histórica e do resto da lusofonia no caso de fazer, zona, e também de cousa (sonoras), defronte a assar (surda) e cedo (surda)  Esta distinção mantendo a sonoridade em fazer, cousa, defronte a assar, cedo (surdas), é própria também de falas meridionais galegas e da língua histórica, e pode considerar-se, polo menos, recomendável...

-Confusão b/v: ambas as duas bilabiais. Como no Norte de Portugal.

-Pronúncia nortenha, africada, do ch: chamar, chorar (txamar, txorar), defronte à pronúncia meridional portuguesa e hoje praticamente geral em Portugal (xamar, xorar) a não ser alguns falares rurais e setentrionais que a conservam africada como em galego.

-o –m final pronunciaria-se como nasal, velar, em lugar de alveolar como em castelão: em Ares distinguiria-se de Henares, a diferença do espanhol, sempre com a vogal precedente fortemente nasalada. Isto diferenciaria a pronúncia de palavras como bem, alguém, ninguém, que soariam sem o ditongo nasal final próprio do português. Em galego essas palavras soariam com uma consoante nasal final próxima do inglês –ing em palavras como thing, (bEng, alguEng, ninguEng), em lugar do ditongo nasal português (beim, algueim, ningueim/baim, algaim, ningaim) E sempre, não se esqueça, em galego a vogal precedente fortemente nasalada, muito mais do que em espanhol.

-Quanto ao “r” forte, a pronúncia galega é a tradicional portuguesa, alveolar e não velar: ferro, carro... Em Portugal é sabido como a pronúncia moderna, velar, ganha terreio de geração para geração.

-O –l final em galego popular é velarizado, não tanto como no galego de Portugal ou no Brasil, onde chega mesmo a vocalizar, mas velarizado. Isto podemo-lo comprovar ouvindo com atenção pessoas galego-falantes de zonas rurais, ainda quando falam castelão. Naturalmente o galego TVG ou o galego de pessoas urbanas que não se esforçam em falar bem não cuida esse traço, e isso é aplicável a muitos reintegracionistas.
-A gheada (ghalo, amigho), como traço que nos afasta da lusofonia, não teria cabimento nesse padrão galego que estamos a construir. Em chave interna, podemos aceitar a nível muito coloquial ou popular, uma gheada suave, verdadeiramente aspirada, longe do "j" castelão em que muitas vezes se converte por influência dessa língua no galego.
-A pronúncia de -lh- deve ser lateralizada, como na prática totalidade dos falares portugueses, com alguma exceção explicável por castelanismo (Campomaior) e como, aliás, é próprio do falar tradicional do espanhol, hoje já em recuo. Deve ser rejeitado, já que logo, o chamado "yeísmo" ou a deslateralização de -lh-, por ser claro espanholismo.
Com efeito, a pronúncia tradicional espanhola, coincidente com a portuguesa, recua claramente na Espanha, nas zonas urbanas e entre falantes novos, mas ainda pervive em zonas rurais de áreas que claramente são tidas por "yeístas". Na Galiza também é pronúncia viva ainda em áreas rurais e em pessoas idosas. Nas zonas urbanas e em pessoas mais novas o "yeísmo" ou deslateralização não só afetou à pronúncia de -lh- mas também do elemento semivocálico -i- em palavras como "Maio". E assim, cai a lateral em "malho", substituída por um elemento consonântico que substitui, por sua vez, o elemento semivocálico de "Maio" de maneira que "Maio" e "malho" passam, ambas as duas, confundidas, para "mayo", empobrecendo a fonética do galego.
Estas pronúncias devem ser rejeitadas, mantendo claramente a diferença tradicional entre "malho", lateral, e "Maio" semiconsoante, o qual nos achegará à lusofonia e nos manterá fieis à língua histórica.
Apontaremos, finalmente, que também em falas brasileiras ocorre alguma deslateralização ("muié" por "mulher"), cousa que não legitima que em galego optemos por estas pronúncias.

Com o dito avonda para definir as linhas chaves para uma pronúncia galega, lusófona e cuidada... Porém, para desgraça nossa, nem sempre ser reintegracionista é sinónimo de usar uma linguagem correta. E isto devia envergonhar-nos e fazer com que reflectíssemos e cuidássemos mais o nosso falar e o nosso escrever...

P.S.: Hai alguma cousa que, após ter lançado a postagem, devia pontualizar. Essa pronúncia que nas linhas precedentes ficou definida seria a pronúncia ideal. Nela, hai traços urgentíssimos, como o vocalismo, outros, cuja adoção não é tão urgente, cuja imediata adoção seria matizável. O exemplo mais claro é o da eliminação do thetathismo em palavras como "cedo" ou "fazer". Com efeito, a pronúncia thetathista é traço muito estendido mesmo em falantes cuja fonética é ótima, e para muitas pessoas seria complicado eliminá-lo (nem todas as pessoas tenhem o mesmo ouvido linguístico ou facilidade para reproduzirem uma pronúncia, o mal chamado "sesseio", que não soasse artificiosa) Em todo o caso, mesmo pensando no futuro ideal, podia deixar-se a eliminação desse thetathismo só para contextos internacionais lusófonos, mantendo-o como pronúncia opcional interna galega... sempre recomendando a sua eliminaçao ou "sesseio" (mal chamado), mas matizando a urgência da universalização desse "sesseio", muito recomendável por harmonizar com a Lusofonia, mas complicado na Galiza, quer para a maioria do povo, quer para os reintegracionistas mais conscientes, a não ser alguns que o tenhem na sua fala nativa, como é o caso do Carlos Durão, por exemplo, e outros que, pola sua formação linguística, lhes é doado mudar a sua fala neste ponto. É claro que o ideal seria, no futuro, universalizar essa pronúncia que nos achega mais à lusofonia, mas hai outros traços que me parecem mais urgentes para evitar essa ideia de galego deturpado que nos transmitem os média e muitos falantes, entre eles os reintegracionistas. Cumpre muito realismo e muito tino, muito didatismo, para as pessoas alheias ao reintegracionismo se achegarem a nós e considerarem ao sério as nossas propostas. Já dixem noutra ocasião como o excessivo radicalismo, dogmatismo ou mesmo agressividade ou carga ideológica, podem afastar, como de facto afastam, muitas pessoas de nós, cousa que nem devemos nem podemos permitir, em bem do galego e da Galiza...

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Ele haverá esperança?

Nesta tardinha morna de Outono venhem-me ideias a cachão... A polémica que gerou a minha anterior postagem deixou-me um mau sabor... Um sabor para o pessimismo. Mesmo pensei que não pagava a pena escrever nada, que era inútil, que só servia para liortas e lideiras estéreis, e que não convenceria ninguém... Houvem apagar este blogue, mas...
Pergunto-me: como é que uma ideia como o reintegracionismo, que forneceria à Galiza de uma ferramenta utilíssima no mundo, como é a sua própria língua tornada de vez língua de cultura, não vinga na própria Galiza? Uma ideia tão simples, tão fácil de entender olhando sem prejuiços e com objetividade... E não pega, não.
É verdade que a rede permitiu uma difusão das ideias reintegracionistas sem precedentes, evitando os obstáculos da censura oficial, mas isso é insuficiente.
Recentemente surgiu a Academia Galega da Língua Portuguesa. Qualquer movimento na direção de darmos a conhecer a lusofonia galega no resto do mundo, no resto dessa lusofonia, é bom, é ótimo, eu diria. Os fruitos aí os estão: temos vocabulário galego específico já em corretores ortográficos lusófonos, em vocabulários como o da Porto Editora, temos a edição de dous clássicos galegos, e logo virão mais: Cantares Galegos e Sempre em Galiza, em boas edições, cuidadas, que darão a conhecer essas obras no mundo lusófono. É verdade que, no caso que mais conheço, o de Cantares, houvera uma edição da Caixa de Aforros, creio lembrar, que tenho nas estantes da minha casa. E esta edição, do Higínio Martins, serviu de base para a que a Academia tirou do prelo...atualizada polo próprio Higínio. A edição tenta inserir a obra de Rosalia na Lusofonia e dá-la a conhecer no mundo lusófono, o qual é louvável. Não concordo, porém, com adatar a morfologia verbal galega não castelanizante que a autora usou, substituindo-a por formas verbais portuguesas. Num texto literário isso devia ser respeitado e não substituir nada a não ser a ortografia, léxico e morfologia castelanizantes. E não falo de variantes como falades/falais/falás, as três presentes no galego e que podem ser mudadas na comum -ais (falais), mas de formas como disse, houve, etc, ou pelo em lugar de polo...
Vendo como está a realidade galega, só uma adoção dum padrão galego que conserve certas peculiaridades próprias, não castelanizadoras, poderá fazer com que a nossa ideia ince. O reintegracionismo só triunfará se convencermos muita gente, na Galiza, de que acolhendo-nos a uma norma lusófona não deixamos de ser e falar galego, porque o galego já é português, e falo dum galego não castelanizado, claro... Uma adoção mimética de variantes e morfologia portuguesas desconhecidas aqui não conseguirá triunfar. É só descer à realidade de como a gente pensa e sente na Terra e a ideia que o comum dos galegos tem do reintegracionismo. Portanto, terá de ser construida uma norma galega do português que exclua os castelanismos e conserve algumas das suas peculiaridades (mui poucas, certas formas verbais, polo, cousa, dous... certas marcas de galeguidade imprescindíveis, para que, sem deixar de ser galego, seja também português..., para além da fraseologia galega própria, léxico próprio, etc) E não digo isto porque eu veja um perigo real consistente em acabarmos todos falando à lisboeta (preferiria isso do que falando espanhol), mas porque o perigo está no outro extremo, na castelanização que paira sobre nós e ameaça esnaquiçar por completo os farrapos que ainda restam, para além da maciça deserção das camadas mais novas em favor da língua castelã. Com efeito, falarmos em padrão português a uma sociedade que se auto-odeia a si própria e tende a rejeitar tudo quanto cheirar a galego, tanto ou mais se soa a português e inda por riba português padrão... Por isso mesmo, temos que convencer os galegos de que falândomos galego não espanholizado na fonologia, morfologia, léxico, sintaxe... estamos também a falar português, o nosso português, o português dos galegos, e isso, a meu ver, não se consegue com a adoção mimética do padrão lusitano, nem com a agressividade com que nos foros reintegracionistas adoita ser recebida qualquer discrepância por mínima que ela seja, com essa adopção total de um padrão lusitano.
O lavor da Academia dando a conhecer a realidade galega na lusofonia é louvável (como louváveis são, independentemente das discrepâncias mais ou menos pontuais, essas edições de clássicos que oxalá continuem) Mas eu preocupo-me com que o nosso lavor e a nossa existência pegue aqui dentro, na Galiza. Porque se houvesse muitos escritores galegos e muitos leitores galegos desse português da Galiza, isso acabaria por ser visto, dalô da Lusofonia, essa que tão longe fica, essa que a pesar de tudo, no dizer do Professor Fernando Venâncio, "não nos liga nenhuma" em expressão bem portuguesa. Quando o reintegracionismo inçar na Galiza, ele será reconhecido de vez em Portugal. Portanto, os esforços tenhem de ser feitos, em primeiro lugar aqui, na casa, e quando formos vistos de fora como um país lusófono, então nos terão em conta. E parece que na casa não se gera essa adesão maciça, e isso indica que alguma cousa estamos fazendo mal... Não sei, temo existirem nos reintegracionistas certas atitudes excessivamente agressivas com quem discrepa no mínimo de posicionamentos determinados, o qual só consegue escorrentar pessoas susceptíveis de serem convencidas. Eu próprio dixem na polémica gerada na anterior postagem que teria fugido se as minhas convicções reintegracionistas não fossem firmes e não vinhessem já de velho.
Os portugueses... eles já virão, quando formos visíveis, porque... Ai!, falemos dos portugueses e do que a minha convivência e trato com alguns deles me fizérom julgar:
Vou-vos contar o que me aconteceu hai anos num foro sobre a Lusofonia: eu protestei dizendo que a Galiza também era Lusofonia e critiquei o facto de nela não nos vermos reconhecidos. Um português muito amável respondeu-me que se queríamos ser Lusofonia teríamos que ser nós próprios quem tivéssemos claro que queriamos ser Lusofonia, porque ele sabia que havia muitos galegos que não queriam isso...
Sobre atitudes dos portugueses no problema galego (elas mudarão quando nós, todos ou a maioria, mudarmos e quigermos ser lusófonos de vez), posso dizer alguma cousa, porque tenho bastantes amigos portugueses:
Basicamente hai uma ignorância total na gente comum sobre o galego: assimilam-no ao mirandês. Pensam que o galego é uma espécie de mirandês algo que não lhes atinge perto, algo alheio, uma cousa estranha aí no Norte, na Espanha. Uma cousa que ninguém sabe bem o que é, mas que por aí anda, entre brêtemas e nevoeiros...
Hai os que conhecem o problema e sentem uma certa simpatia, muito genérica, por esse "português arcaico" mas muito "espanholado".
Hai quem acabe por dizer: "espanhóis querendo falar português" (a maioria pensam assim quando escuitam qualquer galego-falante descuidado, entre eles muitos reintegracionistas)
Hai também certo rejeitamento por essa espécie de arremedo nortenho do seu falar, que não é tomado ao sério e lhes lembra palavras e expressões rústicas, de velhos, que já não se usam, próprios de gente antiga, impróprias de pessoas educadas e finas, novas, atuais... Quer dizer, o galego soaria a qualquer cousa parecida com falar regional, inda por riba nortenho, e inda por riba espanholado. E tudo quanto soe a falar regional será rejeitado especialmente polas pessoas novas, rejeitado por ridículo, rústico, pobre, antigo... E isto é assim no Sul ou no Norte dessa república que nos é, que nos deve ser aos galegos, tão querida e entranhável...
Quando lhes amostras textos em galego RAG ficam estranhados, perplexos, ou mesmo exprimem o seu desgosto, mas pensam que é uma guerra que lhes é alheia e em que eles não devem intervir. Tenho um amigo que chamou ao galego oficial "manta de retalhos" e uma amiga que lhe chamou "língua de ninguém". Mas a ideia dominante é que eles não devem intervir.
Várias dessas atitudes podem conviver em vários membros da família. Ainda lembro um meu amigo do Norte, ele e a mulher. Quando veu à minha casa e viu o dicionário de Estravis, ele louvava-o porque aí encontrara tantas palavras da sua zona que hai tanto já não ouvia, e que ele gostava de lembrar porque também eram palavras do português (reivindicava esse falar nortenho como português), mas logo a mulher respondeu: -Oh, sim, serão portuguesas, mas são palavras que tu não usas!!!! (quer dizer, ninguém botava mão delas num contexto minimamente culto)
Isto na gente do comum. Nos inteletuais não sei, o Venâncio sabe melhor. Ora, o Venâncio tem toda a razão em que todo o falar regional esmorece às mãos do padrão da Televisão. Os jovens nem querem falar em qualquer cousa que não seja "lisboetês" e tentam assimilar o seu falar ao falar da TV, dos média, da capital. E isto é assim, ainda, nos do Norte. Este amigo de que vos falei empregava o "r" vibrante forte (em roda, carro), e o filho o "R" da capital, velar. Esse amigo empregava as formas verbais "vós tendes", "vós ganhais", o filho já "vocês têm", "vocês ganham". Qualquer traço de falar regional galeguizante é visto como rústico e bruto, e rejeitado...
Ao fio desse esmorecimento do falar regional em Portugal, lembra-me esse trabalho sobre o português oliventino de que já se falou noutra postagem, que representou uma experiência muito curiosa, por inesperada, para o seu autor. E quero dizer isto aqui porque já se falou sobre a pervivência ou não de dialetos portugueses, e em concreto, em referência ao Prof. Venâncio, sobre o chamado "alentejanês" (alguém pedia ao professor para se exprimir em "alentejanês") Pois aconteceu ao autor desse trabalho, que tentava comparar os falares de Olivença e Campomaior, que descobriu em Olivença um português cheio desses traços todos que os dialetólogos portugueses definiram como próprios do falar centro-meridional (isso era alentejanês, sem dúvida, sim, mas...) A seguir, o autor quijo comparar esse português com o de Campomaior (já em Portugal), julgando que ia encontrar todos os fenómenos linguísticos descritos nos manuais e presentes em Olivença (não se esqueça que Olivença deixa de ser portuguesa em 1805 e, de então para acô, o seu português vive alheio aos média lusitanos e ao seu português padrão e, por contra, em contato com o espanhol) O autor procurou, em Campomaior, velhos até de quase cem anos e... oh! surpresa!: esses velhinhos tinham o sotaque e alguns traços típicos alentejanos, mas em muito menor número do que em Olivença e sempre infinitamente por baixo do esperado... O Padrão da capital tinha até esfarelado os falares dos velhos mais idosos da bisbarra. Portanto, se alguém quiger procurar essa enteléquia do alentejanês que vaia a Olivença e ali encontrará um falar parecido com o que os dialetólogos definírom, mas entremeado de castelanismos às mãos-cheias. E fora disso, que compre os discos do grupo Adiafa As meninas da ribeira do Sado ou Tá o balho armado, onde as cantigas se exprimem nesse dialeto com afã claramente caricaturizador e, até, esperpêntico ou satírico, porque difícil lhe será encontrar outro lugar qualquer onde essa fala se mostre viva... Por outras palavras, difícil será encontrar alguém, nem na mais afastada aldeia, que fale ao jeito dessas cantigas, nessa linguagem, e em todo o caso, as pessoas novas fugirão de assim se exprimirem como almas levadas de todos os demos do inferno.
Conto isto para verdes como em Portugal o peso do padrão dos média e da capital é tal que todo esse complexo de diferentes falares a que os galegos estamos (ou nos tenhem) tão afeitos na Galiza, é, em Portugal, digo, pura enteléquia e lembrança do passado, especialmente nas pessoas novas, lembrança do passado e dos manuais de dialetologia. Tudo ao contrário que na Galiza, onde a cousa dos diferentes falares chegou.ao ponto de dar pé a uma hipercaraterização e sobredimensão da importância da "dialectoloxía" nos estudos universitários do âmbito RAG/ILG, e isto porque a falta dum padrão real galego, efetivo, imposto por um poder efetivo, permitiu a sobrevivência de traços dialetais e a presença, bem mais real, de variantes ou "áreas" (chamemos-lhe assim) linguísticas, por pouco tempo isso sim, perante a pressão uniformadora que o espanhol exerce.
E isto é assim apesar de, nesse trabalho de que falo, não faltarem alguns fenómenos interessantes detetados, traços dialetais, hoje em declive, mas ainda presentes, traços surprendentemente comuns com a Galiza. Mas poucos e em franca decadência.
Voltândomos ao assunto, portanto, creio que os portugueses, a gente comum (como os inteletuais, provavelmente, e diga o Prof. Venâncio, que neste ponto pode deitar mais luz) não nos vêm, ainda, nem de longe...de maneira que somos ainda os grandes ignorados na Lusofonia.
E só nos verão quando nós nos virmos a nós próprios, e nos reconheçamos a nós próprios como lusófonos. Mas temo que nós, reintegracionistas, última esperança do galeguismo, estamos perdendo essa batalha...  a batalha da opinião pública galega (das elites e do povo) que está a ser ganha, não polo galego RAG, mas polo espanhol.
Ora bem: é verdade que hoje ando pessimista.
Ele haverá esperança?

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Cervantes, terra de cervos...

O Luar já estivo na terra ancaresa. Os Ancares, terra de ursos e lobos... outrora..., que hoje, ficar, apenas alguns ursos que baixam das Astúrias, e alguns lobos, pero nada que de longe se pareça com a vigorosa povoação da serra da Culebra samorana ou das serras leonesas, asturianas ou trasmontanas.
Perto dos Ancares são as serras d'O Courel, as terras altas e soas que o grande poeta courelão, Uxio Novoneyra, cantou com força inigualável. Entre Os Ancares e O Courel são as terras d'O Cebreiro, conhecidas por, através delas, passar o chamado "Caminho Francês" dos que vão morrer a Compostela.
São Ancares, Courel, Cebreiro... terras de alta montanha, que fazem parte do sistema das serras orientais galegas, prolongação das montanhas cantábricas, terras que a emigração no seu dia dizimou, terras érmedas (ermas) que chamou aquele poeta.
Na sua mais terna juventude o Luar chegou a quase conhecer de memória (de cor) muitos dos poemas do livro do grande poeta do Courel, Uxio Novoneyra, intitulado Os Eidos... E como este Luar mora em terra montesia, pois Paradela de Mouros, de que já falarei noutro dia, é terra de altas penedias e faralhões, rochedos e cumes nevados onde só o corço e o lobo conseguem chegar, galgando, rubindo (no verdadeiro sentido que essa palavra tem em português galego) polas encostas e falésias quase verticais que se erguem cara ao céu, hoje tivo saudades desse tempo e das sensações que a leitura dos versos do poeta da montanha lhe causavam no seu, daquela, terno e inocente espírito quase selvagem...
E chegárom-lhe à lembrança aqueles dous primeiros versos... (peço desculpa por mudar a ortografia, que não a peculiar feitura do galego caurelão em que o autor se exprime)

Courel dos tesos cumes que olham de longe...
Aqui sinte-se bem o pouco que é um home.

E continua:

Terras érmedas do Freixeiro,
montes irados!
povos pobres
que se fôrom quedando nos ossos.

Ou aquela  poesia em que evoca os sons e o cheiro à terra húmida e fria, que emana da toponimia com que o home agarimou a Terra nomeando-a (lede com evocação quase religiosa):

Heim d'ir ao Pía Páxaro e à Boca do Faro
deitar-me na Campa da Lucença num claro.
Heim d'ir à Devesa da Rogueira e a Donis
ao Rebolo à Pinça e ao Chão dos Carris.
Heim d'ir a Lousada e a Pácios do Senhor
a Santalha a Veiga de Forcas e a Fonlor.
Heim d'ir ao Cebreiro passar por Linhares
rubir ao Iríbio a Cervantes e a Ancares
Heim d'ir a Cido e a Castro de Brio
baixar e andar pola aurela do rio.
Heim d'ir a Céramo cruza-lo Faro e entom
debrocar pra baixo cara Oéncia e Leom.
Heim d'ir a Vales e a Pena da Aireja
e a un eido só onde ninguém me veja.
 
Juro por todos os deuses dos céus, polos que hai e polos que houvo ou haja de haver,  que não mudei nada do galego caurelão do autor, a não ser o castelanismo solo, solas por, sem prejuiço da contagem silábica, ser possível passar para os galegos e soas.
 
E, permitide-me que ainda vos ponha estoutros, onde a incrível combinação de sufixos e jogos de palavras parece trazer-nos, mesmo defronte dos olhos, o paxarinho a brincar na ponta da rama...
 
No bicarelo do bico do brelo
canta o paxarinho
no mesminho
bicarelo do bico do brelo.

Permitide, ainda:

Terras altas e soas,
serras longas, mouras,
eu som esta cor de soida'

Ancares sonhados c'o longe!
Penas de Marco de Médio Mundo em ringuileira,
do Candedo às Moás.

Cimo da Devesa!
Alto da Lucença,
Formigueiros, Montouto, Pia Páxaro,
tesos cumes do Courel!
povos pobres
ardidos de tristura, mouros de queimados!
Lor rugindo polo val' pecho!

Uzedo e uzedo!
fontinhas outas 
penedos
carroços escuros
fragas, agros, soutos e devesas! 

Referência:
-Novoneyra, Uxío (1981): Os Eidos. Libro do Courel (Vigo: Edicións Xerais de Galicia)

Enfim, o Luar pensava falar de Cervantes, terra de cervos, e acabou por falar de Uxio Novoneyra, poeta que fizo com que o Luar revivesse tempos fugidos no nevoeiro do passado, no nevoeiro de uma terra, Paradela, em que os cumes ultrapassavam as nuves e tocavam o céu, cujas gentes parece que tinham certos poderes vindos de não se sabe onde, como o serem quem de falar sem palavras ou, dito doutra maneira, de ler o pensamento. Isto não é cousa verificável hoje, porque já não mora ninguém naquelas aldeias e os descendentes dos que se fôrom já perdêrom esse dom, se é que os seus antergos alguma vez o tiveram, porque não hai evidências nem factos constatáveis, a não ser as longínquas recordações dalgumas pessoas, netos ou bisnetos dos antigos moradores... e certo conto que anda por aí, escrito por um louco que se fazia chamar a si próprio Luar de Janeiro, nome que roubou do verdadeiro Luar que escreve estas linhas,  sem a autorização do seu legítimo dono.
Como o verdadeiro Luar de Janeiro não se importou demais com a usurpação -pois, ao cabo, à vista ficará quem alumia melhor e com luz mais prateada e mais pura nas noites do Janeiro- perdoou ao impostor e ambos os dous luares, o falso e o verdadeiro, acabárom por ficar amigos... Talvez, algum dia, o falso venha convidado, com o seu conto sobre Paradela, e queira vertê-lo aqui.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

De traduções do Quixote, do português de Olivença, o galego e outras cousas...

Hai tempo que o Luar quer escrever alguma cousa sobre a língua e não sabe o quê. Pensou em falar de como leu o Quixote na sua língua (quer dizer, em portuguesa língua), da mão dos Viscondes de Castilho e Azevedo, que o traduzírom da saborosa prosa do seu autor, um tal Cervantes, de origem galega (O Luar já estivo em Cervantes, concelho da luguesa terra d'Os Ancares, terra viçosa e farturenta de carvalheiras, faiais, loureiros, verde rechamante nas encostas que acarinham a relva das valinhas e ribeiros que molham as suas terras, de onde diz-que provém a família do grande escritor...)
A seguir, o Luar leu o prólogo que, na versão portuguesa de Aquilino Ribeiro, critica a versão feita por estes viscondes, à qual apõe alguns defeitos de tradução, duma banda, traduzindo demais, por vezes, ao pé da letra e introduzindo, portanto, termos castelanizantes no português, doutra, dotando à portuguesa prosa de um estilo excessivamente pomposo, gongórico ("...De tempos a tempos -diz- empolgado pela ênfase dos pregadores e gongóricos de má morte, dá-nos um Cervantes tiré a quatre épingles, arrevesado e pomposo.")... O Luar não puido evitar certa deceção ao ler essa crítica, e pensou que o Quixote que acabava de ler provavelmente perdera, sim, boa parte do sabor original. E como também sabe e fala castelão, começou a ler a correspondente versão saída da pena cervantina e concordou em que assim era, mas... o quê dizer, provavelmente qualquer tradução deitaria pola mesma ferida, quer dizer, daria na mesma eiva... Ou não...
Veu à lembrança do Luar um artigo, divertido, engenhoso, irónico, do original João Guisão Seixas, sim, aquele autor de teatro que era censurado na Galiza por escrever em normativa reintegrada e que apresentou um texto literário em português de Portugal num concurso literário do Eixo Atlântico que admitia textos em galego RAG-ILG e em português de Portugal, com um júri entre cujos membros figuravam membros do ILG que, sem saberem quem premiavam, deram o primeiro prémio a esse autor... Pois esse, digo, publicou no número 52 da revista Agália um artigo intitulado "Malditas Palavras", a falar do galego, de Valle Inclán e das traduções das suas obras. Lúcido artigo cuja leitura recomendo a todos os que isto lerem.
Entre outras cousas, vinha a dizer que a prosa castelã de Valle poderia ser facilmente traduzível para português, distinguindo entre aquela prosa descritiva, cuja tradução não oferece maiores dificuldades e aquele castelão genialmente criado por ele para, nesse idioma, exprimir o feitio e o jeito das pessoas do povo a se exprimirem em galego. Para isto, dizia, nada melhor que procurar um registo português popular e arcaizante, tipo minhoto ou transmontano, que verteria em português aquele jeito de dizer de sabor arcaico que tinha esse castelão com que Valle recria o galego. E, faltava, porém, para dar a esse português popular nortenho, agalegado, a marca definitiva de galeguidade, com enfeitar esse falar popular, inserindo aqui e acolá alguma mostra de aquela cheia de castelanismos que os galegos costumam empregar quando no seu vernáculo se exprimem...
Ora, pensou o Luar, para além do já dito, no Quixote que leu reparou em que a tradução perde aquela mistura de estilos que carateriza o original, porque Cervantes põe em boca de D. Quixote um estilo propositadamente arcaizante, que na época deveu ser muito bem percebido polos contemporâneos que lérom a obra, e muito divertido para eles, conseguindo o efeito irónico que o autor procurava, com variantes já desusadas na altura, mas ainda sentidas como antiquadas polos falantes castelãos da época. Assim, quando nesse tempo se dizia "no huyáis", Cervantes fai ao seu Quixote dizer "Non fuyades". Tudo isto desaparece na tradução portuguesa que fai dizer a uns e outros "Não fujais"...
Quiçais um tradutor galego, bom conhecedor da sua língua e das suas variantes diacrónicas e territoriais, possa imprimir essa marca arcaizante no falar do entranhável cavaleiro, de maneira que onde todos os personagens dixessem "Não fujais", "coisa", "dois", Dom Quixote poderia dizer, à galega e à antiga, "Nom fujades", "cousa", "dous"...
Ao fio destas cismadelas, o Luar lembrou-se dum seu amigo, francelho ele, que andou por terras oliventinas e lhe falou de um trabalho que leu sobre o português oliventino, em que se estudavam comparativamente os falares de Olivença e Campomaior (podede-lo ver nos enlaces à direita, em baixo) Esse francelho falou assim ao Luar quando ouviu que este falava o português galego:
-É incrível, meu neno, como a língua é a mesma. Os fenómenos linguísticos repetem-se de Norte a Sul. Os fenómenos pretensamente exclusivos galegos não só se podem achar (cada vez menos, bem certo é, porque o português de Lisboa vai varrendo com tudo) no Norte de Portugal, pois que aqui no Sul também existem. Cousas curiosíssimas. Pensa em variantes do tipo comeu-no, levou-no, na forma pronominal le em lugar de lhe, mais velhos ca mim, flexão do gerúndio -comêndomos- formas verbais acabadas em -om (fôrom), ausência de -i- antiiático -arêa em lugar de areia-, e outros.
Ora, o mais arrepiante, -dizia-, é como perante a pressão do espanhol, o sistema racha pelos mesmos pontos, e vemos no falar oliventino castelanismos análogos aos que inçam os falares da Galiza, por exemplo, colocação dos pronomes clíticos à espanhola (me disse que fosse por disse-me que fosse) ausência de infinitivo pessoal, sufixo -ción, sión, etc)
Realmente é uma só língua -concluía o amigo francelho- o que se fala acima e abaixo.
E o francelho também lembra como nesse trabalho que leu sobre o português de Olivença, o autor diz não ter ouvido nem gravado a pretensa forma -benté-de que lhe falaram alguns oliventinos.
-Aí, -dixo o francelho-, o autor erra, porque na obra que ele próprio cita de Manuela Florêncio sobre o dialeto alentejano, essa forma aparece recolhida por Leite de Vasconcelos em Alandroal, o que prova ela não ser inventada, imaginada ou mal ouvida, e que deve ter presença em Olivença.
Nestas andava assim falando quando se lembrou de que tinha que partir...
-Já o V'rão vai no fim... e hei de, ainda, atingir as terras africanas, atravessar o Saara, para passar o Inverno nas sabanas mais ao Sul. Talvez até atravesse as selvas tropicais para chegar ao extremo Sul desse continente, onde as termitas voadoras não deixarão de me fornecer de boa substância alimentar da que aqui me já vai faltando... Adeus! Até à Primavera!
-Boa invernada -dixo-lhe o Luar-, vai a modo, e olha que tenhas jeito com os inseticidas, não me vaias afogar com tanta contaminação! Espero ver-te no Fev'reiro próximo!
O francelho ergueu o voo, rumou cara ao Sul, e já não no vim mais. Oxalá volte prò ano e conte mais do que viu e ouviu acô embaixo.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

-om, ám/-ão: a cousa não vos era pra tanta lideira!

O Luar de Janeiro já leu avondo sobre este tema e, recentemente, nos foros do Portal Galego da Língua (http://www.pglingua.org/) volveu-se falar no assunto, pois alguém comentou sobre a atualizaçom da Norma AGAL...
Coma sempre, a discussão foi azeda, ríspida e por vezes desrespeitosa. Num foro de pessoas civilizadas, como é o do Portal, ninguém devia "perder as estribeiras", de jeito que a coragem na defesa das ideias não devia virar carragem.
A discussão vem já de velho. Como é sabido, a norma AGAL parte de uma filosofia: as falas galegas (isto dito sem qualquer matiz pejorativo), como as portuguesas, podem ser entendidas como realizações de um mesmo sistema linguístico e, portanto, podem inserir-se numa norma, a galega, que seria assim mais uma variante de uma língua comum. Quer dizer, a norma galega seria, à par da portuguesa e da brasileira, mais uma das que conformam hoje, no mundo, a língua portuguesa (ou galega ou galego-portuguesa), como língua supranacional e pluricêntrica.
Diferentemente dela, a normativa RAG-ILG entende que o galego fai parte dum sistema linguístico (comum ao português e brasileiro), mas é uma língua diferente e, portanto, o padrão galego é autónomo e distinto ao das outras ramas do sistema. Ao menos assim foi entendido tradicionalmente polos defensores desta normativa.
Consequentemente com a sua posição, a AGAL entendeu que a norma galega, substancialmente comum com as outras do seu sistema linguístico, podia ser lida e considerada como a mesma língua por qualquer leitor luso-brasileiro. Ao cabo, o leitor português ou brasileiro estaria a ler um texto na sua própria língua. A norma galega conservaria peculiaridades da língua próprias da Galiza, como fai o português do Brasil, por exemplo, a respeito do de Portugal (pensemos na ausência do artigo com os possessivos, na colocação dos pronomes, etc) Entre as peculiaridades da Norma galega estaria a conservação etimológica das terminações próprias da língua medieval que unanimemente as falas galegas mantêm (-om, -am, -ao/-am, ladrom, pam, irmao/irmám), o digrafo -mh- em palavras como umha, nengumha, as formas verbais peculiares da Galiza (algumas delas presentes também em dialetos portugueses...), plurais em -ns (capitans, ladrons, irmaos/irmáns), etc. Como sabemos, o português de Portugal e do Brasil reduziu aquelas terminações em -ão, conservando os plurais a sua origem etimológica. Assim, o singular harmonizou em -ão (ladrão, pão, irmão) mas o plural conservou a origem (ladrões, pães, irmãos) ainda que a harmonização do singular trouxo, como bem explicava no foro do PGL o professor Dr. Fernando Venâncio, inúmeras confusões, ao ser esquecida a etimologia do singular, de que ainda são testemunhas os dicionários portugueses: verão/verãos, verões; guardião/guardiães, guardiões; vulcão/vulcões, vulcães, vulcãos. Com frequência esta confusão fizo com que as formas não etimológicas se fossem impondo na prática: verões, guardiões, vulcões... No entanto, a norma galega conserva na escrita a memória da origem da palavra, de maneira que o leitor galego sabe que o plural de vulcam é vulcans, de verao é veraos, de guardiam é guardians (ou verãos, guardiães, vulcães como despois chegou a admitir a própria AGAL) O professor Fernando Venâncio alertava, no foro do PGL, para o perigo de o galego vir a cair na mesma confusão que caracterizou o português durante vários séculos como consequência daquela unificação no singular, e propugnava os galegos conservarem na escrita, e não só na oralidade, as terminações que a norma AGAL mantém. E não lhe faltava razão...
Ora, o Luar de Janeiro lembra mui bem, porque já vai tendo os seus anos, como algumas publicações reintegracionistas começárom a afastar-se dessa prescrição da AGAL e começárom a defender o uso do til, primeiro só nos plurais e em casos em que a etimologia o demandava (ladrom, pam, irmão/ladrões, pães, irmãos), despois quijo-se chegar a uma solução intermédia no singular (ladrom, pãm, guardiãm, irmão) e finalmente acabárom por reduzir no singular tudo para -ão, seguindo neste ponto a norma portuguesa e brasileira: ladrão, pão, irmão/ladrões, pães, irmãos. O Luar lembra muito bem, no II Congresso Internacional da Língua Galego-Portuguesa na Galiza, alá polo ano de 1987, como um grupo de professores organizaram uma espécie de reunião paralela onde proclamavam a sua adesão ao Acordo Ortográfico de 1986, esse que suprimira os acentos e despois deu em nada... Nessa reunião, o Professor Isaac Alonso Estravis apresentou o seu Estudos Filológicos Galego-Portugueses, livro que o Luar leu e releu naqueles anos de tenra juventude...
Argumentavam estes que a unificação ortográfica devia ser total, e que escrever -ão faria com que os falantes luso-brasileiros nos lessem melhor, inseriria o galego dentro da lusofonia de pleno direito, e não impedia que os galegos seguissem pronunciando como sempre: assim, ladrão, pão, irmão, não, na Galiza leriam-se: ladrom, pam, irmao/irmam/irmão, nom, etc.
A partir daí, mais ou menos recorrentemente, houvo sempre um enfrontamento entre os partidários de -om e os partidários de -ão. O número dos -ãoistas foi em aumento, ao ponto que a Comissom Línguística da AGAL acabou por aceitar o til de nasalidade como possibilidade nos plurais e nos casos etimologicamente justificados: ladrom, pam, irmão/ladrões, pães, irmãos. Os partidários do -ão pedírom mais, mas a Comissom já não cedeu (No número 19 da revista Agália está a resposta da Comissom).
Uma solução intermédia foi a ensaiada no dicionário e-estraviz. Nele, mantêm-se os galeguismos -om, -am, -ão, polo, che/te, cousa, fazendo os plurais em -ões, -ães, -ãos e desaparecendo umha que passaria para uma, e propugnava as formas verbais portuguesas: disse, fiz, fez em lugar das peculiares da Galiza dixo, figem/fizem, fijo/fizo...
Podemos sintetizar os argumentos de uma e outra postura, muito brevemente:
-OMistas: fidelidade às falas galegas, a unidade da língua não deve impedir a sua diversidade, e manter esta peculiaridade galega é enriquecedor, evitando confusões nos plurais e o possível esquecimento das formas próprias da oralidade galega, se não se virem reflectidas na escrita. Com efeito, grafar tudo em -ão implica introduzir uma alteração na morfologia e fonética alheia à variedade galega da língua comum, que deve ser respeitada como a brasileira fai com as suas peculiaridades. A norma galega seria assim pedagógica, achegada à realidade do galego atual, e internacional, por ser substancialmente lusófona. Ninguém poderia acusar os reintegracionistas de entreguistas ou mimeticamente adotantes de tudo quanto soe a português...
-ÃOistas: uma cousa é falar, outra escrever. Grafar tudo em -ão não impede que cada pessoa pronuncie como quiger (de facto, não hai uma única pronúncia galega, pois dentro do próprio galego há várias pronúncias possíveis: por exemplo, corações pode realizar-se como coraçons, coraçôs, coraçois, coraçoes, corações...). A escrita nem sempre pode ser fonológica. Antes, quanto mais suprafonológica for, melhor. Por exemplo, pense-se na escrita inglesa, bastante distante da sua dicção, mais do que a portuguesa, e se nada impede aos ingleses escreverem e pronunciarem corretamente, nada impede tampouco aos galegos escreverem da forma comum, ainda que a sua pronúncia se mantenha como tradicionalmente foi conservada. Hai, continuam, variedades do português onde se mantêm pronúncias semelhantes às galegas, mas isso não impede uma grafia comum, etc. O discurso de manter as peculiaridades galegas acaba por ser análogo ao dos isolacionistas e acaba por implicar uma consideração do galego como língua diferente do português... Até, houvo quem chegou a dizer que a norma AGAL era uma variedade mais do Portunhol semelhante ao Portunhol do ILG-RAG (num exagero mais do que evidente ao ver do Luar...) Quanto às acusações de radicalismo antipedagógico que lhes fam os partidários da norma AGAL, eles respondem que não hai nada que impeça os galegos escreverem português, e acusam os seus contrários, até, de complexo de inferioridade, ao considerarem os galegos incapazes de chegarem a dominar a ortografia do português (-Porque não podemos escrever em português? tão burros e pouco inteligentes somos?-chegam a dizer-)
Estes autores aderírom posteriormente o Acordo Ortográfico de 1990, que têm praticado até agora, depois da experiência falida do de 1986, e que já foi vigorado em Portugal.
Antes de continuarmos, o Luar quer recomendar a leitura do artigo de José Henrique Peres Rodrigues, muito esclarecedor, intitulado "A Escrita e a Norma cara ao Século XXI", no número65/66 da Agália, do primeiro semestre de 2001. Explica, muito melhor ca mim, e mais por extenso e polo miúdo, a polémica e os argumentos de uns e de outros.
A controvérsia chegou frequentemente à desqualificação e até ao insulto, encirrando os ânimos numa animadversão que fai ao Luar ficar perplexo..., gerando divisões no seio do reintegracionismo, que em nada o favorecem.
Ora, a cousa dista de ser tão simples, porque dentro de uma e outra tendência hai matizes: pensemos que os hai que escrevem com -ão mas com formas verbais galegas, ou com -om e formas verbais portuguesas. Hai, ainda, quem considerou a necessidade de inserir as falas galegas dentro do padrão português, ao ponto de ser a norma de Lisboa o referente da Galiza. O sonho destes poderia sintetizar-se numa Galiza mais ou menos integrada politicamente em Portugal, e a RTP (televisão portuguesa) a impor a norma lisboeta varrendo triunfalmente -qual novo D. Afonso Enriques dacavalo, de espada à mão e lança em riste- falas transminhotas, como já fizera com tanta variedade linguística que esmoreceu dentro do próprio Portugal... Por isso, talvez devamos falar de um continuum que vai da norma AGAL na sua versão originária (-om, -am, -ao/-ons, -ans, -aos), até os partidários do padrão português (até com formas verbais portuguesas, pelo pela, em lugar de polo, pola, dois coisa em lugar de dous cousa), que os hai e senão vede algumas das obras de autores moços galegos da coleção de poesia de Cadernos do Povo, Nós, O Ensino...
A tendência -omista da norma AGAL foi recentemente atualizada (A famosa Atualizaçom de que aqui já se falou) para se adatar ao Acordo Ortográfico de 1990, que finalmente foi vigorado em Portugal como já ficou dito.
Portanto, por clareza, distinguiremos entre a Norma Galega da AGAL adatada ao Acordo Ortográfico de 1990, e a norma dos (-ãoistas) partidários do mesmo Acordo Ortográfico, os quais, entre as possibilidades que deixa o Acordo, e perante a ausência de uma norma ortofónica própria da Galiza, se acolhem à norma portuguesa do Acordo (Acordo que permite certa flexibilidade dependendo das pronúncias, consagrando, longe da unidade total, como já advertiu o professor Venâncio, a possibilidade de existência de uma norma portuguesa e outra brasileira, acolhendo-se os -ãoistas galegos à portuguesa por razões práticas fundamentalmente) Esta última linha concretizou-se à volta da recentemente criada Academia Galega da Língua Portuguesa.
Chamaremos à primeira norma AGAL atualizada (entendida na versão mais moderna, a que admitiu o til de nasalidade em irmão, ladrões, pães, irmãos) e à segunda Acordo Ortográfico (AO)

Despois do exposto o Luar deve dizer que tem experimentado, ao longo dos anos, na sua escrita, todas as possibilidades da Norma Agal, atualizada ou não, em versão primeira ou modernizada, bem como de AO. E isto com muitas vacilações, num percurso semelhante, julga, ao de muitos galegos. Leu argumentos e contra-argumentos e, passado o tempo, acabou por pensar que havia razões para ambas as linhas de pensamento. Todos tinham a sua parte de razão, se bem que posturas extremas, como pensar que o galego é conjunto de falas vulgares, que convém uniformar recorrendo ao padrão de Lisboa, ou pensar que a norma AGAL não é português, mas uma versão esquisita do galego isolacionista, devem ser rejeitadas.
Como clarificar a questão? São realmente tão diferentes as duas posturas?
Se ambas as posturas rejeitam o galego espanholizado do ILG-RAG, se ambas as posturas pensam que galego e português são ou, ao menos, podem ser entendidas, como variantes da mesma língua, se igualmente observamos que hai, realmente, um continuum entre uma e outra posição, mas que todos defendem a mesma filosofia, fora posturas radicais e acusações sem fundamento, porque tanta visceralidade?
O Luar pensa, na realidade, que uma vez vigorado o Acordo, e sendo já inevitável a sua aplicação, atualizada já a Norma AGAL, consoante ao Acordo, a Norma AGAL atualizada e AO são, realmente, a mesma norma (melhor ou pior construídas, pois já ficou dito aqui como os critérios da Atualizaçom não parecem os mais afortunados e, por outra parte, não parece muito lógico acolher-se ao AO versão Lisboa em lugar de procurar uma versão galega do Acordo dentro do seu espírito, como com fortuna pouca tentou a Comissom Linguística da AGAL) Pondo uma e outra (AGAL e AO) o ênfase em mais ou menos peculiaridades galegas, no fundo são a mesma cousa. O galego é uma variante (com mais ou menos personalidade) dentro da língua comum. Essa é a filosofia que ambas as duas tendências reintegracionistas seguem: galego e português, a mesma língua. Porque, já que logo, tanta genreira?
Mas as peculiaridades e as variantes podem conviver dentro duma mesma norma. Acontece na fala, e pode acontecer na escrita. Na língua castelã, os argentinos têm as suas próprias formas verbais (vos tenés é o mesmo que em Espanha tú tienes; ustedes tienen é o mesmo que em Espanha vosotros tenéis). Na página da Real Academia Espanhola (http://www.rae.es/), se clicarmos na conjugação de um verbo, aparecem as variantes argentinas à par das comuns. Na imprensa argentina, no cinema, achamos estas variantes, mas eles também conhecem as formas comuns e podem utilizá-las chegado o momento, e segundo o contexto.
Nada impede, portanto, os galegos fazerem o próprio. Os galegos aprenderiam a ler e a escrever com os seus -om, -ám, formas verbais, umha, que não só pronunciariam, mas também escreveriam, não perdendo assim a sua riqueza e peculiaridade galega. Depois o ensino mais avançado iria advertindo da existência de outras formas verbais que também são e fôrom galegas, mas que hoje não são correntemente empregues na Galiza, fazendo parte, porém, da versão mais internacional do seu idioma. E aprenderiam que reduzindo, na escrita que já praticam, -om, -am, -ão, para -ão, o seu galego adquere a feição mais internacional possível. Não perderiam a riqueza da sua morfologia, conheceriam perfeitamente qual é a pronúncia e realização, galega e etimológica, de ladrão, pão e irmão, porque assim a aprendêrom na escrita e continuam a empregar em todos os aspetos quotidianos do seu ler e escrever (ladrom, pam, irmão, que lhes seriam tão familiares como ladrão, pão e irmão) Leriam e interpretariam corretamente qualquer texto lusófono, vinhesse de onde vinhesse. Não duvidariam nunca sobre qual o plural de verão, guardião, irmão... Conheceriam as variantes portuguesas e brasileiras e, fora certas peculiaridades a que nunca renunciariam, como formas verbais, polo, pola, cousa, dous, te/che, etc, marcas sempre presentes de galeguidade, adatariam a sua escrita ao contexto, de maneira que usariam mais ou menos peculiaridades próprias da variante galega consoante o ambiente e a natureza do que escrevem (não é igual um texto literário, jornalístico, epistolar, íntimo...que um texto científico)
Cuido que, deste jeito, se poderia superar esta polémica que tantas forças desaproveitou para a luita fundamental que o reintegracionismo tem de conseguir cara ao futuro e como, ao ver do Luar, derradeira esperança do galeguismo: reunir um número de utentes tal que consigam uma mudança no Poder galego, orientada primeiro a um binormativismo em que a norma reintegrada seja tolerada polo Poder, para deixar concorrer livremente isolacionismo e reintegracionismo, em igualdade de condições. De ocorrer esta hipótese, o resultado não devia deitar dúvidas sobre qual será a linha triunfante: para o Luar de Janeiro acabaria por ser o reintegracionismo...
E isto sem dogmatismos nem desqualificações. Sem excluir qualquer cousa vinda do isolacionismo por ela vir de onde vém, aproveitando o aproveitável que sem dúvida é muito, adatando-o ao nosso jeito de entender a língua.
Doutra banda, não se pode perder de vista o percurso ideológico do isolacionismo que, lentamente, se encaminha cara a convergência com o português. De facto, já advertiu o professor Fernando Venâncio como no léxico os avanços no campo isolacionista são cada vez mais patentes adotando terminologia do Além-Minho, e mesmo rejeitando castelanismos hai séculos presentes na norma portuguesa...
Portanto, aos isolacionistas hai que deixá-los fazer, ao seu ritmo, sem dogmatismos e com posturas conciliadoras, tentando atrair para o campo reintegracionista quantos mais deles melhor. E outro tanto acontece com os chamados "reintegracionistas platónicos", alguns dos quais praticam já, até, o chamado binormativismo (Camilo Nogueira, Suso de Toro, Pilar Garcia Negro, Freixeiro Mato...) Hai que os respeitar aceitândomos como nossas as suas obras, em lugar de os criticarmos. Cada quem precisa o seu ritmo e seguir o seu próprio percurso e caminho. E os reintegracionistas têm de atrair e gerar simpatia e curiosidade, e não animadversão ou ódio.
O tempo dirá, pero o Luar de Janeiro vê que isto já é tema para outra entrada neste blogue desvairado... E prefere falar de estratégias noutra ocasião, que polo de hoje já chega.
Grato pola atenção.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Atualizândomos a norma...

Ao fio da vigoração em Portugal do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 a Comissom Linguística da AGAL (Associaçom Galega da Língua) elaborou uma "Atualizaçom" para adatar a sua norma ortográfica ao referido Acordo.
Isto não deixa de ser pertinente, porquanto o Acordo Ortográfico flexibiliza a norma comum permitindo que cada variante do idioma escolha, em determinados pontos, as opções que se ajustarem à sua feição peculiar.
Neste sentido, é importante, por exemplo, a supressão do primeiro elemento de grupos consonânticos como -cc-, -cç-, -ct-, -pt-... que já vinha fazendo a norma brasileira quando o primeiro elemento não era proferido na pronúncia culta, cousa que em Portugal não acontecia pois, quase sempre, mantinham esse primeiro elemento, fosse ele proferido ou não.
O Acordo estabelece, agora, a supressão desse elemento primeiro quando a pronúncia culta de cada norma o ignore. Neste sentido, uma palavra como "correcto", cujo primeiro "c" era mantido na norma portuguesa escrita (não na brasileira que escrevia "correto") ainda que não pronunciado na fala culta, passa agora, por esta última razão, a ser grafado "correto", dado o "c" ser mudo, apesar de abrir a vogal anterior... Assim, na norma portuguesa temos "correto" mas "facto" por, no primeiro caso, o "c" não ser pronunciado e, no segundo, ser proferido.
A norma galega, neste caso a norma AGAL, bate aqui com um problema, como explica a Comissom Linguística da AGAL, pois, como explica na página 15 da "Atualizaçom" "No galego-português da Galiza nom tem cristalizado, até agora, um modelo prosódico culto autónomo a respeito do castelhano, indefiniçom que também afecta a realizaçom fónica das sequências interiores cc (cç), ct, pc (pç) e pt. Nas manifestaçons orais, a articulaçom dessas sequências consonânticas costuma oscilar entre o sistemático emudecimento da primeira consoante, na língua coloquial, e umha tendência para a prolaçom da primeira consoante, conforme o modelo castelhano, na elocuçom formal. Por sua vez, a CL-AGAL nom tem manifestado explicitamente, até agora, qual deve ser aprosódia na língua formal daqueles grupos consonánticos que, de acordo com a sua proposta ortográfica, se conservam nas palavras galegas."
Assim sendo (e tempo lhes era também de terem formulado alguma proposta ortofónica), a norma galega não pode prescindir duma fixação de quais os elementos consonânticos que nesses grupos se conservem e quais não. Noutras palavras, fai falta estabelecer uma norma fixa para sabermos se havemos grafar "correcto" ou "correto", "facto" ou "fato", "adaptar" ou "adatar", etc.
E a Comissom Linguística estabelece estes critérios:
-No caso de a norma portuguesa e brasileira coincidirem em manter ou não esse primeiro elemento por serem iguais as suas pronúncias cultas, o galego seguirá esse modelo: assim, temos "correto", "adatar", "adotar", etc
-Não se admitem soluções duplas.
-No caso de haver dupla solução numa das normas, em Portugal ou no Brasil, adotará-se aquela que for comum às duas: por isso, a norma galega escreverá caráter, porque em Portugal hai dupla forma, caráter/carácter, e no Brasil uma só, caráter, o que fará com que a norma galega escolha a comum caráter.
-No caso de existirem duplas soluções em Portugal e no Brasil, escolhe-se a forma simplificada comum também às duas normas: se em Portugal e no Brasil hai infeccioso/infecioso a norma galega escolhe a forma simplificada.
-No caso de discrepância entre as duas normas, a galega será a simplificada: Portugal acepção Brasil aceção, na Galiza será aceçom.
-Hai, ainda, exceções em que a palavra mantém um estado evolutivo diferente, por exemplo, galego teito port. e bras. teto ou em que para evitar certas homonimias, a norma galega separa-se das regras anteriores e age independentemente da portuguesa e da brasileira: facto (port. facto, bras. fato) para se não confundir com "fato", grupo ou vestido, contracto, de contrair, para não surgir confusão com contrato (de contratar), óptico (para não confundir com ótico, confr. port. e bras. ótico)...

Na opinião do Luar de Janeiro, os critérios e soluções adotadas não podem ser mais desafortunados. O escrevente galego não só há de conhecer a ortografia da variante galega, mas terá também de ser experiente na norma culta portuguesa e brasileira para poder decidir se deve grafar de uma ou de outra maneira. Terá de, mesmo, conhecer bem as possíveis duplas soluções que numa ou noutra existem para valorizar se coincidem ou não e, ainda, terá de conhecer as exceções peculiares galegas que referimos em último lugar... Complicado e pouco prático, para além de pouco ou nada pedagógico...
A própria Comissom reconhece que em casos de discordância absoluta entre as duas normas, brasileira e portuguesa, bem como naqueles casos em que nas duas normas há duplicidade de soluções, a normativa galega adotará a correspondente forma simplificada, seguindo (o itálico é meu) a tendência geral inovadora registada na língua comum. Na língua comum e em todas as falas galegas sem exceção, e, ainda, na fala das pessoas cultas galegas mesmo quando falam castelão (repare-se nisto, por favor, mesmo quando falam castelão)
Então, temos por uma parte que não existe uma norma ortofónica galega que resolva a questão, mas temos claros indícios de que, numa situação normal da língua galega, a pronúncia culta galega seria a supressão do primeiro elemento dos grupos cultos, com algumas exceções em palavras muito cultas ou recentes.
Exemplos temos avondo. Todas as pessoas cultas galegas que conheço, mesmo falando castelão, suprimem o primeiro elemento dos grupos cultos: correto, conceto, aceción, produto... É só ouvirmos o Ministro de Fomento do Governo de Espanha, galego ele, de Lugo, e tirar as consequências pertinentes. Ouvirmos Pepinho Blanco a falar espanhol é toda uma lição de prosódia neste ponto: suprime sistematicamente.
Portanto, era melhor dizer: a norma galega suprime o primeiro elemento dos grupos cultos, não sendo as exceções tal e qual (aqui entrariam facto e as demais que a Comissom entender)
O Luar de Janeiro cuida que, dada a flexibilidade do Acordo neste ponto, a norma galega pode e deve, partindo das soluções internas, quer dizer, desde e para o galego, fixar uns critérios claros e práticos que reflictam a realidade galega da língua comum. Não parece sério tentar fixar uma norma culta galega partindo doutras normas do sistema que o utente teria de conhecer em profundidade.
Hai, ainda, um outro ponto que o Luar não quere deixar passar, por discrepar com o critério da Comissom:
A Atualizaçom tem um apêndice, uma "Correçom de lapsos e lacunas detetados no Estudo Crítico e no Prontuário Ortográfico" Modifica algumas cousas, suprimindo algumas conjunções, advérbios e locuções:
-Suprime polo de agora, polo de hoje, assim e todo: não se entende, não são castelanismos, são formas galegas que nada restam nem engadem à língua. Polo feito de não existirem nas normas portuguesa ou brasileiras não quer dizer que não possam existir na galega.
-Suprime pero: não é necessariamente um castelanismo, pois existia na língua medieval, só que em Portugal desapareceu. Talvez o espanhol possa ter contribuido para a vitalidade que hoje tem na fala galega, mas daí a suprimi-lo por castelanismo... parece-me demais.
-Suprime ao melhor: quiçais polo seu paralelismo com o espanhol a lo mejor, mas é locução que aparece no dicionário e-estravis, polo qual não parece ser tão evidente o seu feitio espanholizante.
Enquanto o caráter castelanizante de uma forma não fosse claro e evidente, não se devia suprimir só pola circunstância de não se achar na norma portuguesa ou brasileira.
A variante galega pode e deve manter as suas peculiaridades, e uma diversidade dentro da unidade da língua é cousa sã e enriquecedora.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Sobre "deloutro", discussões e oralidade... O Corvo Branco

Chamou a atenção de quem isto escreve como no português falado na comarca de Sárria (Lugo), concretamente na aldeia de Goiam, de onde provém o Luar de Janeiro, apareciam frases do jeito seguinte:
-Chegou à noitinha e logo se foi deitar. Deloutro dia, ergueu-se e não se recordava de nada.
O sentido que aqui dão a "deloutro dia" é, claramente, "Ao dia seguinte" ou, como costumam dizer em Portugal e no Brasil, "No dia seguinte" ou "no outro dia", "ao outro dia"...
Andou o Luar à procura desta expressão no dicionário e-estraviz e noutros, e nada achou. A sua surpresa foi quando em Merlim e família do escritor galego mindoniense (e portanto lucense) Álvaro Cunqueiro, a palavra apareceu empregue no mesmo sentido que lhe o Luar dava.
Despois de muito perguntar e ler, e como nada pudo encontrar, o Luar de Janeiro começou a cismar na expressão. E surgirom-lhe duas hipóteses:
-Ser um castelanismo, quer dizer, ser decalque do espanhol "del otro día", pero não me parece, porque a expressão castelã seria cousa assim como "al otro día" ou "al día siguiente"...
-Então, talvez seja contracção do sintagma "dali a outro" em que o "a", palatalizado, soe de maneira parecida com "e" e daí "deloutro" (dali a outro >dal'a outro">dal'outro>deloutro)
Pois isso, ainda que oxalá apareça alguém dando melhor explicação, para fazer luz nas tevras nesta sempre apaixonante e mesta fraga da língua, que devemos amar e agarimar.
E indo a outra cousa, dias atrás o Luar seguiu o fio nos foros do Portal Galego da Língua, falando da "Atualizaçom" que a Comissom Línguística da AGAL publicou para adatar a sua normativa ao Acordo Ortográfico recém vigorado em Portugal, uma discussão, por vezes azeda e nem sempre respeitosa, entre os partidários de grafar no português da Galiza distinguindo as tradicionais terminações que a oralidade galega e a norma AGAL conserva (-om, -ám, -ão/ ladrom/pam/irmão), e os partidários de adotar o padrão português (tudo em -ão: ladrão, pão, irmão) independentemente de a leitura conservar a oralidade da fala galega.
Outro dia hei falar sobre este assunto.
Ainda, e isto para leitores portugueses e brasileiros, tanto como para os galegos ouvirem e reconhecerem-se na oralidade do português galego, recomendo as gravações que aparecem no blog do amigo Gascon, ilustre opinador dos foros do Portal Galego da Língua.
Eis o endereço:
Ali veredes ou, melhor dizendo, ouviredes, entre outras, duas gravações, uma sobre um texto literário de Álvaro Cunqueiro, "O Corvo Branco", que aparece na sua obra Escola de Menzinheiros, e outra um texto de um Guia das Aves de Portugal e da Europa, sobre o falcão peregrino. Quem lê essas duas gravações com fonética galega é um bom amigo do Luar, que se chamou a si próprio O Corvo Branco. Quando o Luar o descobriu pensou ser o personagem cunqueirão e assim lho perguntou numa noite de Janeiro em que o tal corvo brilhou como nunca à luz do dito luar. Confessou-lhe ele ser o Corvo Branco que Cunqueiro relatara (desfrutai o texto que bem o merece):
O CORVO BRANCO
(Texto literário de Álvaro Cunqueiro)

Este corvo branco viu-se no Valedouro hai alguns anos, na Parróquia de Budiã. Todos os da parróquia o vírom, menos o crego, que andava primeiro burlento, pero despois, havendo tantas testes, enrabejava quando lhe vinham com a nova de que se vira o corvo branco em tal terra. O corvo branco não era branco como a neve, que era meio amarelo, e andava polas sementeiras, e fugiam-lhe os outros corvos. Os senhoritos de Ferreira de Valedouro, que sempre os houvo ali com escopeta, saírom a caçá-lo, pero não lhe acertárom.
Hai gente que diz que o corvo não era tal corvo, senão um tal Pousada, de Gerdiz, prestamista. Uns desconhecidos entrárom na sua casa uma noite e queimárom todos os papéis e recibos que atopárom. Não levárom uma peseta. Comérom e bebérom, isso sim. Ao dia seguinte, o Pousada morreu. Dixo-se que um dos que queimaram os papéis fora um cura de perto de Viveiro, e que o fizo por caridade. A gente do país começou a decatar-se de que o corvo branco se via acarão das casas dos que lhe deviam quartos ao Pousada. Um xastre chamado Presas mandou dizer uma missa pola alma do Pousada, e o corvo partiu e não volveu a ser visto.
-Não berrava coma os outros corvos, dixo-me um de Muras. Eu não o ouvim, pro os que o ouvírom, imitavam-no mui bem. “Viiiiinde, viiinde! Chamaria polos quartos que tinha estrados por aí.
-E logo, os quartos ouvem?
-Ouvir, ouvirão ou não. O caso é que entenderam!

Pousada era coxo, viúvo e sem filhos. Tinha mais duma dúzia de relógios, de bolso e de pulseira, e sempre levava com ele três ou quatro. Seria para atender à pontualidade dos juros. Herdou-no uma sobrinha, que estava servindo em Barcelona. Veu recolher a herança acompanhada do seu pretendente, e merendava todos os dias de Deus péxego em almibre. A sobrinha não deu creto nengum às novas de que o corvo branco fora o seu tio Pousada”
O Corvo Branco contou ao Luar que, depois de lhe ser dita a missa polo xastre Pressas, sentiu como que uma lousa lhe deixava de esmagar as costas, sentiu-se livre e não voltou polo Valedouro...
-Agora -dixo- já não sinto aquela ânsia de ir atrás dos quartos, nem de pousar nos telhados das casas dos que me deviam dinheiro quando eu emprestava a juros. Quando a alma do Pousada de Gerdiz, usurário temido, se viu livre da sua cega cobiça, voa em liberdade no seu novo corpo albino e corvídeo.
Num dia destes hei-no traguer aqui para que nos fale de cousas e palavras que ouviu e conhece...
Deixa-vos, pois, polo de agora, o Luar de Janeiro, na boa companhia do Gascón. Para além dos textos orais do Corvo Branco, não deixedes de ouvir os que ali nos deixa o próprio Gascon, todos eles de uma oralidade excelente, expoente claro de que é possível existir um português galego com oralidade própria, lusófono, longe do sotaque decalcado do castelão que, impudicamente, costumam exibir os média controlados polo Poder, e demonstração clara de não ser preciso, para fugir dessa castelanização, imitar mimeticamente o falar lisboeta dos média portugueses. Existe uma oralidade lusófona galega como existe uma oralidade lusófona portuguesa, brasileira, etc, que deve ser conservada e elevada ao lugar que lhe corresponde.